Título: O clamor dos médicos
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 25/01/2006, Opiniao, p. A10

A série Socorro, sou médico, reportagens que o Jornal do Brasil vem publicando desde domingo, tem oferecido aos leitores uma faceta pouco percebida da interminável crise da saúde pública do Rio de Janeiro. As repórteres Florença Mazza e Waleska Borges radiografaram, com especial clareza, as chagas crônicas a que são submetidos os profissionais nas unidades públicas da cidade. Trava-se uma batalha desumana, conforme sugerem os sombrios e amargurados depoimentos colhidos pelo JB. Até aqui, a série exibiu, por exemplo, o estado de pavor dos médicos que atuam em comunidades dominadas pelo tráfico: da convivência dos profissionais com bandidos baleados ¿ responsáveis por 50% das remoções recebidas no Hospital Souza Aguiar ¿ à necessidade de maior segurança para os prédios e servidores situados em áreas imersas nos ambientes de guerra do tráfico.

As reportagens também descreveram a ausência de estrutura dos hospitais e postos de saúde públicos. Trata-se de uma regra válida para unidades federais e municipais. São tumores capazes de atormentar não só os cidadãos honestos que recorrem ao serviço público mas também os próprios médicos ¿ são eles, afinal, os primeiros a serem atingidos pela justificável ira dos pacientes submetidos ao atendimento precário. Os médicos situam-se na linha de frente da crise: respondem diretamente pela tragédia que se abate sobre os cidadãos que buscam os hospitais públicos e se deparam com o flagelo do sistema.

A série escancarou outra conseqüência trágica do mesmo problema: o extraordinário crescimento do número de queixas da população contra os médicos. Sem condições para exercer o ofício, respondem a casos cíveis, éticos e criminais, acusados de omissão de socorro ou de mau atendimento ¿ 70% contra profissionais da rede pública.

A via-sacra médica tornou-se conhecida de todos. Nos hospitais cariocas e fluminenses não há leitos, ambulâncias, cadeiras de rodas, medicamentos, material de atendimento aos pacientes, insumos básicos de trabalho, profissionais em número compatível com a demanda requerida. Equipamentos como tomógrafos e aparelhos de raios X não funcionam. Enfim, não há nada. No máximo, dispõem de migalhas.

Confrontados com tantas ausências, muitos profissionais são obrigados, às vezes, a conviver com a insuportável leveza da morte: a tortura da escolha entre os pacientes que receberão os seus cuidados e aqueles cujo destino será entregue às mãos de Deus e da sorte. As carências exigem ainda, rotineiramente, a prescrição de medicação que esteja disponível, mesmo quando não é a mais adequada para determinada patologia.

Muitos dos problemas, insista-se, não se originam dos profissionais ¿ apesar das habituais exceções de inabilidade e irresponsabilidade. As graves feridas expostas decorrem da inércia de gestores em todos os níveis de governo. Na galeria de culpados, no entanto, ganham especial destaque o descaso, a incompetência e as trapalhadas promovidas pela prefeitura do Rio. Diante da omissão da União e da falta de coordenação do governo estadual com o município, o prefeito Cesar Maia tem oferecido sucessivos exemplos de que vê na saúde um peso para a sua administração.

Quando se decretou a intervenção federal no Rio, no início do ano passado, ficou evidente o alívio do prefeito ao transferir a responsabilidade da gestão plena de hospitais para o governo federal. Depois de uma crise que se arrastou por longos meses, até chegar ao fim com um acordo entre a prefeitura e o Ministério da Saúde, repetiram-se novos exemplos da falência da saúde pública. Espanto: constata-se uma área essencial transformada em renitente objeto de colapso.