Título: A primeira crise antes da posse
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 19/01/2006, Internacional, p. A8

Na Bolívia, as crises têm sempre um sinal inequívoco. Toda vez que a imprensa local se reúne em frente ao Palácio Quemado ou ao Parlamento, as pessoas desconfiam que alguma coisa importante está acontecendo. Em pouco tempo, o que às vezes ainda nem é notícia junta curiosos e mais curiosos na arejada Praça Murillo, no Centro. Enquanto a multidão vai se formando, um cordão de policiais da tropa de choque chegava para completar o quadro. Ontem, no meio da tarde, aconteceu assim, com a diferença de que as razões do interesse eram, de certa forma, a primeira crise do novo governo, que sequer tomou posse. E o fato de a confusão envolver os militares - há anos afastados das turbulências políticas e institucionais no país.

O estopim foi a substituição do atual ministro da Defesa, Gonzalo Mendes, e a demissão do comandante do Exército, general Marcelo Antezana. Ambos foram afastados pelo presidente Eduardo Rodrigues no bojo da chamada ''crise dos mísseis'', deflagrada após a descoberta de que Antezana havia entregue todo o arsenal de mísseis antiaéreos bolivianos para os Estados Unidos. A reunião na praça era mais um capítulo no imbroglio, com o anúncio do novo comandante, general Orlando Paniagua. Este assumiu o posto ainda sob os efeitos da insubordinação e das ameaças veladas feitas por Marcelo Antezana quando representantes do novo governo anunciaram a abertura de uma investigação sobre o caso. O próprio Evo Morales entrou no caso, ao chamar, publicamente, o ministro e o general demitido de ''traidores da pátria''.

O prenúncio de confusão fez com que muitos moradores da capital se colocassem de prontidão. O mal-estar às vésperas da festa da posse, domingo, se ampliou pela volta da caserna ao centro da política, coisa que há anos não acontecia. Em outubro, o Movimento Ao Socialismo (MAS) de Morales havia denunciado a entrega do arsenal a Gonzalo Mendez e a pressão aumentou depois da vitória eleitoral. As mudanças no corpo militar, estranhamente, não esperaram a troca de governo e foram feitas na última reunião de gabinete do atual chefe de Estado, Eduardo Rodríguez, depois que as Forças Armadas enviaram relatório sobre o caso dos 28 mísseis.

Rodríguez também foi denunciado pelo MAS, em novembro, à Justiça, já que também é o comandante-chefe das Forças Armadas. Justificou a ordem de entregar as armas com o argumento de que o material era obsoleto e perigoso - tese já desmentida por militares. Esclareceu, no entanto, que ninguém autorizou a entrega aos EUA. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, informou que pediria à embaixada americana um exame da atuação de seus militares.

Assim que acabou a posse do novo comando, Morales deixou claro que não baixaria a guarda.

- Os autores intelectuais e materiais, militares e civis, deverão ser julgados. Não podemos desarmar as Forças Armadas. Queremos que elas nos defendam, assim como os movimentos sociais, os recursos naturais, o território, que façam parte da produção do país - decarou o cocalero.

Observando a aglomeração no Palácio, onde acontecia a transmissão de cargo dos militares, o professor Vladmir Gomez, criticava, dizendo que renúncia e demissão não são penas suficientes:

- Isso não é castigo, é um prêmio. São corruptos e não pagam por isso. Se fosse em Cuba, na China ou na Venezuela seriam fuzilados - diz, ao JB . - Somos um país latino-amercano típico, onde há um grau elevado de corrupção nas instituições. Os militares deveriam defender os interesses nacionais, mas trabalham para o governo americano - completa, indignado.

Já para o economista Guido Banúz, o caso é ''uma vergonha'' para a Bolívia:

- Os EUA fazem o que querem aqui, não respeitam nossa dignidade. Esse comandante e o ministro são vítimas da prepotência americana.

Para o aposentado Jorge Samón, parado na porta do cinema defronte, não havia muito com que se interessar no outro lado da rua:

- São todos uns corruptos. Não nos levaram ao mar - afirma, referindo-se à disputa centenária com o Chile pela saída para o Pacífico.

As estudantes Jane Rodriguez e Catarina Gallardo, sentadas na escada da Catedral, que fica ao lado da sede do governo, reclamam da falta de esclarecimento sobre o caso:

- Os militares não saem derrotados porque ninguém sabe ao certo que aconteceu. Quando soubermos, poderemos julgá-los. E acho que vai ser pior - diz Jane.

Para Catarina, o tema das armas é importante demais para não ser divulgado:

- É uma questão de defesa. Já se brincou muito com a ética e a dignidade deste país.