Título: Sem fé no próprio futuro
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 22/01/2006, País, p. A6
Pai de Sandra Gomide, a jornalista assassinada, João abandonou a religião depois do crime e aguarda o braço da Justiça
SÃO PAULO - A última vez em que João Gomide entrou numa Igreja foi para interromper a missa. Cenho crispado, arrancou a mulher Leonilda de um dos bancos perto do altar. Precisava comunicar a morte da filha, sem saber como. Na véspera, dia 19 de agosto de 2000, João almoçara com o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, então diretor de redação de O Estado de S. Paulo. Juntos, dividiram um frango. No dia seguinte, Pimenta matou com dois tiros a também jornalista Sandra Gomide. Agiu como Judas, na Última Ceia, compara João.
Seis anos depois do crime considerado hediondo pela Justiça, o aposentado ainda aguarda a punição do assassino confesso. As referências a passagens bíblicas acabaram. João deixou de acreditar em Deus. A fé está enterrada ao lado de Sandra Gomide no cemitério do Horto Florestal, em São Paulo.
- Jesus Cristo, outra vida... isso é coisa para enganar os outros. Eu era católico. Depois da morte da minha filha, não pisei mais na Igreja - conta João.
Sem a filha, vendeu a loja e agora vive de aposentadoria e rendimentos. Debilitado com o choque, passou por três pontes de safena e uma mamária. Perdeu a sensibilidade nas mãos e nas pernas devido à inflamação nos nervos. Na perna direita, tem uma prótese. João vive na Saúde, bairro da Zona Sul da capital paulista.
- Quando fiz a cirurgia de ponte de safena, disse ao médico: 'Você me segura vivo, porque quero ver esse desgraçado do Pimenta na cadeia'.
Leonilda fez o prato elogiado pelo assassino da filha na véspera do crime:
- Adoro o frango da dona Nilda - disse o jornalista Pimenta Neves.
Hoje, Leonilda apresenta problemas psicológicos e quase não sai de casa. Meses atrás, João cedeu ao impulso de ligar para Pimenta. Queria ouvir a voz do assassino. Sem se identificar, anunciou, peremptório:
- Aqui é de onde se mata frango!
Quando a dor da saudade fica insuportável, João põe boné e óculos escuros. Disfarçado, pega o carro automático - o único que pode dirigir. Segue até a frente da casa de Pimenta, na Chácara Santo Antônio, mas dá meia volta sem descer do veículo.
Hoje, o único companheiro de João é um gigantesco rotweiller de 72 quilos que late grosso quando alguém ousa chegar perto do dono. O aposentado queria Simba naquele fatídico 20 de agosto de 2000.
- Por que aquele desgraçado do Pimenta não teve coragem de matar a Sandra na minha frente?
Algumas vezes, João surpreende-se acalentando sonhos de vingança. Sargento do Exército reformado, defende a pena de morte. O primeiro condenado está escolhido: Pimenta Neves.
- Gostaria de me vingar. Se eu matar o assassino, dou um tiro na cabeça para não acabar na cadeia. Ele matou e não foi preso. Ficou só 77 dias e agora vai à praia e aproveita a liberdade.
João lembra que, em uma das tentativas de se reaproximar de Sandra, Pimenta expôs todo ''autoritarismo''.
- Ele chegou aqui pouco antes do crime e ordenou: ''Sua filha tem 30 minutos para decidir casar comigo. Vou passar cheque e cartão para o nome dela''. Eu nunca aprovei o relacionamento. Ela não queria mais o Pimenta. Minha filha tinha medo dele - lembra João. Receava a diferença de 31 anos entre Pimenta e Sandra. O jornalista é dois anos mais velho do que o aposentado.
Pimenta agredira Sandra certa vez. O caso foi para a Polícia. Depois, à Justiça. No Fórum, o ex-diretor de redação estava acompanhado de dois seguranças contratados pelo Estadão. Um deles se interpôs entre João e Pimenta. Não deixou que o pai de Sandra chegasse perto. O jornalista é hoje investigado por falsificação de dossiê ao lado do número dois à época do assassinato, o editor-chefe Lourival Sant'Anna.
- Não me surpreende que ele esteja sendo investigado por falsificação de dossiê. Pimenta se gabava de usar amigos para melar a venda da Gazeta Mercantil - recorda-se João ao contar antigas conversas com Pimenta.
Faz cerca de dois mil dias que João espera pelo julgamento de Pimenta. O advogado Luiz Fernando Pacheco, substituto de Márcio Thomaz Bastos, atual ministro da Justiça, acredita que a data está próxima. É a chance de olhar Pimenta nos olhos e vê-lo condenado. É a chance de sentir-se vingado pela morte da filha. Pelo menos saberá que o assassino continua vivo, mas atrás das grades.