Título: Além do Fato: Limites da macroeconomia de curto prazo
Autor: Paulo R. Haddad
Fonte: Jornal do Brasil, 19/01/2006, Economia & Negócios, p. A20

A concepção e a implementação de políticas de desenvolvimento sustentável, no Brasil, colocam em questão os problemas de articulação dos objetivos das políticas econômicas de curto prazo, com as políticas de desenvolvimento de médio e de longo prazo. Esta questão inclui, de um lado, a consolidação do ajuste fiscal e financeiro, e, do outro lado, a superação do atual quadro de desigualdades sociais e regionais, por meio de políticas públicas que promovam um novo ciclo de expansão, com eqüidade e sustentabilidade ambiental. O papel do tempo na análise dos problemas econômicos sempre foi uma questão controversa. Em 1923, Keynes, o principal economista do século XX, procurava estabelecer uma noção clara do que seria o curto prazo. Para ele, no curto prazo, há um passado que já transcorreu e trouxe, para o presente, a acumulação de um estoque de capital físico (fábricas, áreas agricultáveis, infra-estrutura econômica e social), um dado perfil de distribuição de renda e de riqueza, uma força de trabalho com diferentes qualificações, os fundamentos das instituições políticas e sociais, um certo grau de degradação do capital natural etc.

Políticas econômicas de curto prazo, que lidam com problemas de inflação, de flutuações nos níveis de produção e emprego, têm de ser operadas dentro das restrições impostas por um tempo histórico e irreversível. É indispensável tomar estas restrições e condicionalidades como ponto de partida. Se, nos momentos tumultuados do presente, quisermos resolver graves questões econômicas com orientações estratégicas, que somente são eficazes no longo prazo, as políticas econômicas podem fracassar. Assim, como dizia Keynes, no longo prazo poderemos estar todos mortos.

Keynes, com esta afirmação, estava simplesmente nos lembrando que os economistas podem tornar sua vida mais fácil se, em momentos de tempestades, se limitarem a apontar caminhos de tranqüilidade que estão além dos mares revoltos, sem demonstrar, contudo, como é possível atravessar o quadro das dificuldades presentes, preservando as conquistas realizadas.

Particularmente em situações em que ainda persistem inconsistências macroeconômicas, com déficits nominais e elevada relação de endividamento, a sociedade inclina-se a considerar as políticas de médio e de longo prazo como supérfluas e residuais. Pressupõe que os problemas de curto prazo (inflação, déficits públicos etc.) são tão críticos e dominantes que não haveria condições para cuidar das suas questões de médio e de longo prazo (a erradicação da pobreza absoluta, a gestão sustentável dos recursos hídricos, a atenuação dos desequilíbrios regionais etc.) antes de se consolidar a estabilidade econômica.

Vale dizer, numa sociedade em regime de rigoroso ajuste fiscal e financeiro, as soluções dos problemas de estrutura (os de médio e de longo prazo) ficariam cronologicamente condicionadas pelas soluções dos problemas de conjuntura (os de curto prazo).

Ora, esta querela perde o seu significado quando se vive, durante mais de duas décadas, uma seqüência de políticas de curto prazo, pois surgem efeitos não previstos ou indesejáveis sobre a evolução dos problemas de médio e longo prazo.

Uma seqüência quase interminável de políticas de estabilização, por exemplo, pode impactar sensivelmente a distribuição funcional da renda nacional, a estrutura de oferta de serviços públicos tradicionais, os níveis de riscos e de incertezas dos investimentos diretamente produtivos etc. Ou seja, de ajuste em ajuste, o que se pensava ser tão somente políticas explícitas de curto prazo vai se tornando políticas implícitas de médio e de longo prazo.

Na verdade, uma longa seqüência de ajustes de curto prazo acaba trazendo um aprendizado perverso tanto para o governo quanto para os agentes econômicos privados que se viciam em estratégias adaptativas, as quais excluem uma visão de perspectiva sobre os interesses maiores da sociedade. De um lado, o governo sabe, cada vez mais, como lidar com políticas monetárias e cambiais eficazes para controlar, no curto prazo, desequilíbrios internos e externos que possam gerar inflação e desconfiança. Do outro lado, os agentes privados se protegem de eventuais instabilidades investindo menos, estocando menos, se endividando menos. Resultado: o crescimento sustentado não vem, os serviços públicos se deterioram, expande-se o cassino da especulação financeira e encurta-se a agenda dos problemas nacionais a serem enfrentados.

A questão que se coloca é identificar alternativas ou novos paradigmas de desenvolvimento que possam vingar, até mesmo, num ambiente macroeconômico de ajustes fiscais e financeiros, rigorosos e recorrentes; que sejam compatíveis com o processo de estabilização econômica em andamento; que não se configurem apenas como bem-sucedidos casos de vitrine, não-replicáveis contudo com a amplitude e abrangência indispensáveis.

A experiência histórica de diversos países nos mostra que os caminhos para superar os limites de políticas macroeconômicas de curto prazo passam por diversos imperativos. É preciso reverter as expectativas mais imediatistas dos agentes econômicos por meio de um projeto nacional de desenvolvimento (por exemplo: uma combinação do tipo PAEG mais Plano Decenal, de Campos e Bulhões) que seja lastreado em reformas econômicas e institucionais (tributária, previdenciária, política etc.), tecnicamente consistentes e politicamente factíveis. É preciso inovar em matéria de mobilização de recursos latentes, tangíveis e intangíveis, por meio de experiências multifacetadas de desenvolvimento endógeno e de gestão compartilhada em diferentes espaços e segmentos da sociedade civil. É preciso ampliar a agenda de mudanças sociais e de transformações produtivas para incorporar o tratamento sustentável e progressivo das diferentes formas de capital.

No caso brasileiro, estes desafios não foram vencidos pelo governo passado e, até agora, não há evidência concreta de que serão vencidos pelo atual governo, cuja agenda econômica ainda tem sido muito conservadora. Parafraseando Keynes, pode-se afirmar que de curto em curto prazo estaremos todos mortos.