Título: Violência e "pobreza mental"
Autor: Pedro Gomes
Fonte: Jornal do Brasil, 01/02/2006, Opinião, p. A11

Presidente da Associação Brasileira de Psicanálise

A violência de nossas cidades torna a todos nós vítimas em potencial e reféns de um estado de ameaça e medo. Conscientes de nosso dever ético, como psicanalistas, e comprometidos com a dignidade da condição humana, estamos bastante preocupados com as conseqüências nefastas do contexto social atual, que incidem sobre o processo de formação e desenvolvimento do homem. Recentemente, um colega de Pernambuco, Antônio Carlos Soares de Escobar, foi assassinado em decorrência de um ato de violência, ocorrido exatamente no momento de um gesto seu de solidariedade e em defesa da vida de um outro. Isso nos leva a mais uma reflexão. O que está acontecendo com a sociedade?

Sabemos da importância de um ambiente empático e sustentador que vai apresentando o mundo à criança de maneira gradual, em acordo com seu estágio de desenvolvimento e respeitando as características que traz dentro de si. O contato precoce com uma realidade que lhe é indiferente, a falta de respostas sintonizadas com as necessidades e os estados afetivos de um ego ainda frágil, dificultam o estabelecimento daquilo que é mais próprio da condição humana: a sua capacidade de simbolizar, (de pensar), fundamental para a subjetivação do eu.

Assim, ao invés de agir criativamente sobre o mundo, a partir de uma consciência de si mesma e dos outros enquanto distintos e ao mesmo tempo semelhantes, a criança desassistida emocionalmente apenas reagirá, impensadamente, à realidade que a cerca, com toda a força e instabilidade dos afetos primitivos, não transformados ou sublimados.

Exemplos trágicos dessa situação são observáveis diariamente nas ruas das principais cidades do país e um dos mais recentes foi o episódio em que um grupo de jovens do Rio de Janeiro ajudou a atear fogo num ônibus, matando e ferindo passageiros impedidos de sair. O desabafo da policial que investigava o crime ao afirmar, em entrevista aos noticiários de televisão, a impossibilidade total de comunicação entre dois mundos inteiramente diferentes - o dela e o dos jovens - ilustra a consternação de to dos frente à gravidade do assunto.

Entendemos que a pobreza por si só não implica em desamparo emocional, visto que é freqüente a manifestação de solidariedade humana entre as camadas pobres da população. A questão preocupante é a propagação de uma ideologia que privilegia os interesses do mercado em detrimento das necessidades básicas do ser humano, tanto concretas como emocionais.

O homem, atualmente, vem sendo utilizado para servir aos interesses econômicos não ocupando, como deveria ser, a posição de alvo de seus investimentos. Dentro dessa lógica, os indivíduos privados de participar da cadeia produtiva e de consumo, são inteiramente excluídos. Vemos assim surgirem gerações que se multiplicam formando uma espécie de ''mundo a parte'', como foi citado pela policial. Um mundo de seres cujo empobrecimento da estrutura mental impede o desenvolvimento da capacidade de lidar com os próprios afetos e com as realidades interna e externa.

Independentemente de orientações político-partidárias, nós psicanalistas apoiamos todos aqueles que lutam para que o ser humano seja colocado no lugar que lhe é devido: como centro principal de nossa atenção e do nosso trabalho.

A nossa responsabilidade como psicanalistas é trabalhar no sentido do resgate da subjetividade e da saúde emocional do indivíduo e, como cidadãos, não podemos nos furtar a investir na luta pelo respeito à dignidade e à preservação da vida humana.