Título: O andaime e a cruz
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 01/02/2006, País, p. A2

Ao visitar o grande canteiro de obras de Brasília, Raymond Cartier, do Paris-Match, resumiu a grandeza do projeto em um parágrafo curto. Cito-o de memória: A catedral é uma cruz de madeira, sobre tábuas soltas. O grande jornalista francês, conhecido pelo seu humanismo e pela força do texto, descreveu um sonho. Brasília era um sonho que se concretizava. O andaime e - sobre ele - a cruz. Ontem, há 50 anos, Juscelino assumia a Presidência da República, depois de meses tumultuados. Em agosto de 1954, acossado pelos inimigos internos e externos, Getúlio atirara contra o coração. Em outubro de 1955, o mineiro era eleito. Poucos dias antes do pleito, Lacerda dizia, em artigo que expunha o ódio dos conservadores, e que cito também de memória: A dupla Ku e Jo não pode ser eleita. Se eleita, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.

Eleita ''a dupla'' - Juscelino Kubitschek e João Goulart - tentou-se o golpe em 11 de novembro, frustrado pela resistência política da Câmara e pela reação militar de Lott e Denys. Não era um homem que assumia a Presidência da República. Era uma vontade. Juscelino não conhecia economia, não conhecia profundamente história, nem se aprofundara nas doutrinas governamentais de seu tempo. Era médico, e os médicos costumam pensar organicamente. Sua visão é a da vida em um corpo concreto, com o funcionamento simultâneo das glândulas e órgãos. Por isso, conforme sempre confessou, não se sentia atraído pela vida parlamentar. Gostava de intervir na realidade, a fim de melhorá-la. E o fizera, nos dois cargos executivos que desempenhara antes, o de prefeito de Belo Horizonte e de governador de Minas.

Havia em Juscelino uma coisa que parece rara em nossos dias: o sentimento de nação. Ele acreditava no Brasil e em seu povo. Embora convivesse, desde que se formou, com as elites de Minas, ele se dava melhor com a gente simples do povo, e com a modesta classe média, de que viera. Ele amava a vida, e a sua fama de sedutor é procedente. Ele sabia como conquistar não só as mulheres, o que não deixa de ser virtude, mas também correligionários. Uma conversa com Juscelino quebrava os preconceitos políticos mais arraigados.

Os adversários invejavam sua capacidade de encantar as massas, de se confrontar com a hostilidade da grande imprensa conservadora, e de mobilizar equipes e multidões, na tarefa de levar o Brasil adiante. Juscelino podia sofrer nas reflexões solitárias, mas se mostrava ao povo como homem alegre, otimista, entusiasmado - e a alegria, como disseram outros, é a coisa mais séria da vida.

Há economistas - sempre economistas - que contestam hoje seus êxitos, debitando-lhe a crise que se seguiu. Há outros que mostram o contrário. Conforme Carlos Alberto Teixeira, editor da Revista Econômica Mercosul, Juscelino, ao assumir, encontrou uma inflação anual de 19,2%, medida de acordo com o IGP-DI, e a deixou em 30,9%. Foi um aumento substancial, no curso de cinco anos, mas longe, bem longe, do que ocorreu mais tarde - e se tratou do preço pago pelo extraordinário desenvolvimento que se seguiu. A dívida externa era de 3,42% e cresceu para 4,08% do PIB no final de seu mandato. Hoje é de 28,78% do PIB. A dívida pública federal era de 1% do PIB, e hoje representa 51%: um aumento de 50, nestes 50 anos. O salário mínimo real - ou seja, o seu poder de compra - correspondeu, em 1959, a R$ 561,54 de hoje. Durante os cinco anos de seu governo, a média anual de crescimento foi de 8,10% ao ano - 25% mais elevada do que a do crescimento do resto do mundo. A construção de Brasília, em valores de hoje, foi de US$ 40 bilhões, ou seja, um quarto do que pagamos de juros somente no ano passado. No governo passado, todas as estatais criadas por JK foram entregues aos privados na bacia das almas. E a dívida interna aumentou 11 vezes.

A crise que se seguiu foi política, e se refletiu na economia. O senhor Jânio Quadros não soube governar, tentou o golpe, e devolveu o Brasil à crise institucional que Juscelino domara. Juscelino foi apenas um homem comum, obstinado no exercício de singular virtude: a do amor ao Brasil e a seu povo.