Título: A Enron e o Brasil
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 27/01/2006, País, p. A2

Na próxima semana, segundo o New York Times, começa um dos mais importantes julgamentos da História dos Estados Unidos, o dos ex-dirigentes da Enron, Kenneth L. Lay e Jeffrey K. Skilling. O escândalo da Enron - considerada best of the best das grandes corporações norte-americanas - mostra como a aparente transparência do capitalismo moderno é enganosa. Detrás das imponentes fachadas de seus edifícios centrais, dos balanços divulgados e dos bem redigidos press-releases, podem reunir-se hábeis criminosos, com pomposos títulos acadêmicos, para ludibriar, ao mesmo tempo, os consumidores de seus bens e serviços e os acionistas. Para isso lhes é necessária a cumplicidade dos parlamentares e dos dirigentes do Poder Executivo. Em alguns casos, e o dos Estados Unidos sob os Bush é exemplar, os executivos das grandes corporações escolhem, entre eles, os que podem melhor defender seus interesses no governo, e se articulam a fim de ali os colocar, mediante o uso de todos os recursos - e não só os do dinheiro. O fato é que há sempre um grupo de administradores que se entende, para controlar, ao mesmo tempo, o estado e o mercado. Já em 1930, em plena crise do capitalismo ocidental - com a quebra da Bolsa de Nova York - Friedrich Zimmermann, (citado por Simone Weil, em Écrits historiques et politiques) mostra a aliança burocrática daquele tempo para o exercício do poder: ''Nós nos encontramos sob o domínio da burocracia sindical, da burocracia industrial e da burocracia do Estado, e estas três burocracias se assemelham a ponto de serem intercambiáveis''. É o que vemos hoje, de forma muito mais acentuada. Deixou de existir nas imensas corporações - salvo casos muito especiais, de empresas de família - a ligação cultural entre o chão da fábrica e a gerência dos negócios. O administrador moderno é neutro, não lida com pessoas, mas, sim, com números; nada tem a ver com o cotidiano da produção. Deixa uma cadeia de lojas para dirigir uma montadora de automóveis, da mesma forma que assume qualquer função burocrática no Estado. Hoje são muito mais cotados, no mercado de trabalho, os que possuam um título de MBA do que os portadores de um PHD. É um tipo de adestramento especial, destinado apenas a aumentar os lucros, com a redução sistemática de pessoal como meio para a diminuição dos custos.

O julgamento dos capitães da Enron nos serve de exemplo. Aqui também - sobretudo a partir do governo Collor - temos sofrido a promiscuidade entre o poder público, os administradores profissionais das grandes corporações e alguns setores da burocracia sindical. Não é segredo para ninguém que a criação de uma das grandes centrais sindicais brasileiras foi financiada por empresários de São Paulo, interessados em quebrar a força da CUT. As excelentes relações entre os banqueiros e a equipe econômica são conhecidas, e intercambiáveis têm sido em suas funções: o diretor do Banco Central de hoje é o grande executivo de um banco, ou incorporador de outro, amanhã; e é no mercado que os eternos controladores da burocracia do Estado cooptam novos quadros. Trocam-se os governos, mas eles continuam no poder real.

Temos os nossos escândalos, como os norte-americanos. Os métodos podem ser diferentes, mas o objetivo é o mesmo: o controle de grandes corporações, para o enriquecimento dos administradores, mediante artifícios contábeis e jurídicos, como se provará se a CPI das Privatizações não for frustrada pelos diretamente interessados. Entre outros casos emblemáticos, temos o da privatização das Telecomunicações, com sua seqüela de escândalos envolvendo o senhor Daniel Dantas e a Kroll, nas denúncias de lavagem de dinheiro e de espionagem de autoridades governamentais. Em todas as grandes privatizações foi notória a cumplicidade entre o governo e os beneficiados.

Na matéria de ontem, o NYT diz sobre a Enron o que se pode dizer dos responsáveis pela entrega dos bens nacionais: perante o tribunal da opinião pública eles já foram condenados há muito tempo. Só há uma diferença: no caso da Enron, o julgamento formal começa na próxima semana. Não sabemos se, nem quando, os culpados pelo que ocorreu no Brasil irão aos tribunais.