Título: A Autoridade Nacional Palestina acabou
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Fonte: Jornal do Brasil, 27/01/2006, Internacional, p. A10
A vitória dos fundamentalistas do Hamas nas eleições palestinas trará conseqüências a longo prazo, algumas inesperadas. Dois aspectos, no entanto, já são bastante visíveis. O resultado do pleito, em primeiro lugar, é uma indicação clara do fracasso completo da liderança tradicional palestina em criar um corpo político. A Palestina não é, ainda, um Estado, mas já é um Estado desmontado. Desde os Acordos de Oslo, em 1993, assinados entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), a população dos territórios gozou de uma limitada autonomia. A sucessora, a nova Autoridade Nacional Palestina (ANP), assumiu o poder sob condições difíceis. Mas qual foi o movimento de libertação no mundo que não enfrentou sérios desafios quando se tornou governo?
A ANP teve uma grande oportunidade de firmar a fundação institucional de um Estado viável. Porém, em vez de suprir a população da infraestrutura necessária para o desenvolvimento econômico, de educação, de previdência, de serviços de saúde, de programas habitacionais e de reinserção de refugiados, a organização liderada pela Fatah de Yasser Arafat gastou mais de 70% de seu orçamento em uma dúzia de serviços de Segurança e Inteligência que competiam entre si. Com isso, todas as outras esferas de atividade ficaram negligenciadas.
Tal situação gerou o que se chama, em árabe, de um ¿Estado Mukhabarat¿ (policial), semelhante ao que prevalece na maioria dos países árabes ¿ Egito, Síria, Arábia Saudita, sejam repúblicas ou monarquias.
O vácuo deixado pela ANP, incluindo na esfera social, foi preenchido pelo Hamas. Além disso, a popularidade não se deve apenas à ideologia do fundamentalismo islâmico e seu compromisso com a destruição de Israel. No largo espectro pelo qual os palestinos levaram o movimento à vitória, percebe-se que o apoio cresceu na mesma medida em que percebiam o que o Hamas realmente fazia por eles enquanto a ANP dilapidava seus recursos.
Não foi apenas a corrupção endêmica na liderança palestina que levou tantos cidadãos a votarem contra ela. O Hamas construiu melhores escolas, creches, centros médicos, serviços de saúde e organizou programas para jovens e para mulheres ¿ incluindo a verba especial paga às famílias dos terroristas suicidas. Nas eleições, o Hamas recebeu os dividendos por ter feito o que a ANP e o Fatah deixaram de fazer.
É ainda questão aberta saber se o Hamas no governo se tornará mais pragmático e menos comprometido com o terrorismo. É uma posssibilidade. Não se pode fazer préjulgamento, nem acreditar que os atuais organismos da ANP ¿ especialmente os que lidam com a segurança ¿ irão permitir uma transferência pacífica de poder. Além disso, não há precedente nesse processo. Nunca houve uma passagem sem violência entre nenhum dos 22 Estados integrantes da Liga Árabe.
A resposta de Israel à vitória do Hamas será obviamente complicada pelas próprias eleições locais, marcadas para o dia 28 de março, e pelo fato de o país ser conduzido, neste momento, por um primeiro ministro interino, Ehud Olmert. (O titular, Ariel Sharon, ficou incapacitado por sofrer um derrame semanas depois de o premier deixar o partido Likud para fundar uma nova legenda, de centro, o Kadima).
A despeito da ausência de Sharon, o Kadima se mantém à frente nas pesquisas de intenção de voto. As mais recentes atribuem à legenda 44 dos 120 assentos no Parlamento (Knesset), comparados aos 21 para os trabalhistas e 14 para a extrema-direita do Likud ¿ liderada pelo ex-premier Benyamin Netanyahu. O sucesso do Kadima se deve à uma inovação na política israelense introduzida por Sharon: o desengajamento unilateral de Gaza.
A retirada das colônias judaicas do território palestino foi baseada na convicção de que a distância entre as posições de Israel e da ANP eram muito grande para permitir negociações viáveis. Assim, os israelenses precisaram tomar a iniciativa unilateral em torno do estabelecimento de uma futura fronteira do país, torcendo para uma eventual negociação mais adiante.
Essa também é a linha adotada por Olmert. Mas a vitória do Hamas sugere que a distância entre israelenses e palestinos se tornará ainda maior, e que as chances de um acordo negociado permanecem num futuro muito mais distante. Isso deixa outros movimentos unilaterais de Israel ¿ como a retirada de algumas áreas da Cisjordânia ¿ como a única opção viável. A administração realista de um conflito substituirá, assim, a utopia da esperança de uma resolução.
Numa região de paradoxos, o resultado do pleito acrescentou mais um: normalmente, quando extremistas de um lado se tornam mais fortes, os do outro lado tentam se equiparar, gerando uma espiral perigosa. Neste caso, no entanto, a vitória dos extremistas do Hamas pode ter fortalecido não os extremistas do Likud, mas os centristas do Kadima. Ninguém pode estar certo de qualquer desfecho, naturalmente, mas é o quadro mais real que se pode traçar. (Project Syndicate)