Título: A viúva pródiga
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 27/01/2006, Outras Opiniões, p. A15

Qualquer que seja o resultado da eleição presidencial, com a vitória ou a derrota de Lula e até com o inesperado de um azarão disparado por fora na reta final, a reeleição será enterrada, em vala comum, amaldiçoada como praga que destruiu dois governos: o do segundo mandato do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e metade do primeiro do torneiro mecânico. No caso sabido de FHC, os meses iniciais do seu governo deslizaram como o barquinho bossa nova em plácido mar azul. A mosca da mesma cor picou a vaidade e assanhou a ambição da turma palaciana e o governo desandou. As reformas dos compromissos de campanha que estavam sendo aprovadas pelo Congresso em articulações decentes, foram paralisadas pela onda suja de suspeições das compras de votos amazônicos para garantir o bis da precipitação.

Senadores e deputados aprenderam a lição oficial e, daí por diante, cada voto foi negociado na barraca da barganha. E se o restante do primeiro mandato perdeu o embalo e patinhou em embaraços, o segundo começou empestado pelas denúncias das trampas notórias, embora nunca provadas por documentos, como recibos de pagamentos registrados em cartório. As suspeitas e indícios de fantásticas tramóias na coceira das privatizações que desfalcaram o patrimônio nacional fizeram o resto.

Lula, pelo visto, não aprendeu os ensinamentos teóricos das leituras históricas da sua confessada paixão recente nem prestou atenção aos alertas da prática: o seu hipotético segundo mandato (que, de favas contadas, baixou às funduras de inviável e ganha fôlego com as últimas pesquisas) está sendo perdido de véspera, como peru de Natal.

Como o festejado comunicador bom de improviso gosta da ênfase, não custa fazer a sua vontade: nunca, na história deste país, um presidente-candidato mobilizou o governo, com tal desembaraço que passa pelo descaramento, como o que estamos assistindo na campanha ostensiva da reeleição.

Salta todos os limites do decoro e da compostura. Lula consegue desmentir o que está à vista com a facilidade com que esqueceu, durante três anos, as promessas de quatro campanhas.

A fase amarga da angústia com as denúncias do mensalão e do caixa 2, o maior escândalo de todos os tempos, expôs o governo na fragilidade dos seus erros, da omissão, da ineficiência, do aleijão do obeso ministério de 31 ministros e secretários atolado na inércia da desmoralização. As suspeitas bateram às portas do Palácio do Planalto, ao gabinete do presidente. O todo poderoso José Dirceu, chefe da Casa Civil e virtual presidente em exercício caiu na engrenagem das acusações e foi desossado. Sem mandato, vaga como sombra à procura de nada.

A linha de risco não foi ultrapassada. A CPI dos Bingos, de maioria oposicionista, promete prolongar os trabalhos até o fim da corda. Na CPI dos Correios, o relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) antecipou que incluirá o presidente Lula no seu relatório como negligente em relação ao escândalo que alega não ter visto nem sabido no seu trânsito palaciano.

Muitos aborrecimentos não foram removidos. O alento com a derrubada pela Câmara da barreira da verticalização, que escancara a porteira para as alianças estaduais e municipais entre partidos, liberados para lançar candidatos próprios a presidente, ajuda mas, não basta para limpar a barra.

No clima de vale-tudo para pavimentar a rota da reeleição nos quatro meses de pressa, antes da vigência das restrições legais que engessam o governo, Lula joga pesado. No ritmo frenético do desespero tenta fazer o que não fez em três anos. A agenda de viagens domésticas e internacionais garante palanque, microfone e assistência para as inaugurações simbólicas, como de trechos de estradas com buracos tapados no corre-corre da improvisação.

E a choradeira da herança maldita das dívidas impondo o sacrifício de severa economia virou pelo avesso da orgia da gastança. O ministro Antonio Palocci, da Fazenda, arriou a trouxa e abriu o cofre da viúva à farta distribuição de donativos eleitorais. Aumentos, reajustes de salários, de vencimentos, de aposentarias e pensões, sejam dos favoritos de sempre do Judiciário, do Legislativo e do Executivo chovem em todas as hortas, em generosidade nunca vista. Até os servidores públicos, tangidos à miséria em 11 anos de desumano e discriminatório esquecimento, vão receber o engambelo de um cala a boca de cerca de 10% das perdas com a inflação.

Na escalada do descaramento, o governo anuncia a realização de uma penca de concursos para mais de dez mil vagas no serviço público. E é para já, para as nomeações antes da quarentena da proibição constitucional.

Ou Lula recebeu um aviso do além de que sua reeleição está garantida pelos astros ou a leviandade arma o laço de um deplorável açodamento. Não é ético atropelar o eventual sucessor com fatos consumados. Certamente há várias áreas do serviço público com urgente necessidade de pessoal, como a Saúde, a Previdência Social e outras, de mazelas expostas nas filas da falência do governo. O mais, pode e deve esperar.

Lula inventa moda para tampar o rombo na promessa dos 10 milhões de empregos em quatro anos.