Título: A primeira grande revolução do século 21
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 29/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

''Você viu quem 'eles' nomearam para Ministro da Justiça?'' Era a principal e mais significativa observação da direita ao novo ministério da Bolívia. Se pela primeira vez, em mais de 400 anos, um líder indígena assume a presidência do país, o gabinete tinha que ter uma cara totalmente distinta. Maioria de indígenas, militantes da luta contra a privatização da água e dos hidro-carburetos nos Ministério da água e da minas, militante aymara no da educação, mesmo não sendo um professor, entre outros.

Mas chama especialmente a atenção que uma mulher indígena, que iniciou sua vida laboral aos 13 anos como empregada doméstica, que foi vítima de violências, inclusive sexuais, se tornou militante sindical das empregadas domésticas, posteriormente presidente do sindicato e, como parlamentar eleita, obteve a aprovação da lei de proteção do trabalho das empregadas domésticas - tenha sido nomeada para esse cargo. Essa lei fixa o horário de oito horas de jornada, reconhece o direito a férias e a 13º salário, assim como seguro de saúde.

Ainda é minoritário o setor das empregadas sindicalizado, mas foi pelo menos um primeiro passo, de reconhecimento legal da profissão que, lá como cá, mais emprega a jovens e mulheres pobres. É a primeira escala no mercado de trabalho para quem chega do campo, no caso da Bolívia, caracterizada também pelo fato de serem indígenas, em geral muito jovens, tal como acontece aqui.

A nomeação para um cargo usualmente ocupado por advogados, doutores, bacharéis, juízes ou políticos de plantão, recaiu em uma mulher, indígena, jovem, dirigente do setor de empregadas domésticas, justamente porque busca proteger os mais desprotegidos e incorporar definitivamente a justiça do trabalho entre as funções essenciais da Justiça e do Ministério da Justiça - se querem portar com um mínimo de dignidade o nome de Justiça.

Essa mesma indignação nunca se manifesta quando banqueiros são nomeados para cargos econômicos, em que decidem, segundo seus critérios e conveniências, por exemplo, o salário da grande massa de trabalhadores. Parece que economia e justiça são coisas das elites dominantes. O povo que se contente com outros temas, periféricos e mais afins com seus supostamente parcos conhecimentos.

Mas esse aspecto não é o único que distingue o governo do primeiro líder indígena a dirigir a Bolívia. Evo Morales começa sua jornada todo dia às 5h e termina à meia-noite. A primeira reunião do ministério, realizada na quinta-feira passada, foi marcada e efetivamente se iniciou, às 6 da manhã. Tudo em obediência aos princípios fundamentais dos povos aymaras: ''não roubar, não mentir, não ser preguiçoso''. Um bom choque de produtividade e de transparência no Estado boliviano.

Além disso, Evo diminuiu seu salário, assim como de todos os ministros pela metade, a mesma iniciativa que seu partido - o MAS, Movimento ao Socialismo - propôs para os parlamentares, iniciativa que deve ser aprovada porque esse partido detêm a maioria nas duas casas do Congresso. Esses recursos serão utilizados para elevar a verba de educação e especialmente para a campanha de alfabetização, para que a Bolívia possa, em três anos, juntar-se a Cuba e à Venezuela - que apóiam a essa campanha - como país livre do analfabetismo.

Uma rede pública nacional de rádios está sendo criada, inicialmente para viabilizar essa campanha, mas seguirá existindo, como contribuição à democratização dos meios de comunicação.

Se quisermos anotar outras diferenças, diremos que o governo de Evo Morales é o primeiro, no continente e no mundo, que foi eleito prometendo sair do modelo neoliberal e que já deu passos decisivos no que considera a criação de um Estado forte, para regulamentar a livre circulação do capital, mas também para fomentar a produção - centralmente a de pequenas e médias indústrias -, assim como para garantir o direito da grande maioria da população.

Por isso e por muito mais, Eduardo Galeano discursando para uma imensa multidão nesta semana em La Paz, anunciou que termina a ditadura do medo na Bolívia, aquela que nos impõe a falsa idéia de que não podemos construir um mundo diferente do existente. A Bolívia inicia a primeira grande revolução do século 21, uma revolução democrática, com ideologia indigenista e soberania popular.