Título: Poder do gás é a quimera de Putin
Autor: Owen Mathews
Fonte: Jornal do Brasil, 29/01/2006, Internacional, p. A12

NOVA YORK - A Rússia começou 2006 cortando a exportação de gás natural para a Ucrânia depois que o governo local se recusou a pagar um aumento que quadruplicaria o preço subsidiado. A crise na Ucrânia, onde a indústria originária da era soviética depende do gás barato russo, logo se espalhou pela Europa, que consome 80% do produto exportado por Moscou, quando a Ucrânia começou a desviá-lo do duto que atravessa seu território. Ironicamente, 2006 é também o ano em que a Rússia assume a liderança do G-8, cuja reunião será em Moscou. O tema improvável que o presidente russo Vladimir Putin escolheu para seu pronunciamento é segurança energética.

Ainda que não seja mais uma superpotência, as enormes reservas de petróleo e gás fazem da Rússia uma potência energética, e Putin parece disposto a fazer esse jogo. De alguma forma, o petróleo garante menos poder econômico do que o gás porque é um bem fungível (um lote do produto pode ser substituído com facilidade), e interrupções no fornecimento podem ser contornadas por compras no mercado mundial. Mas o transporte custa muito, uma vez que depende de dutos caros ou de instalações para a liquefação que não podem ser substituídas rapidamente quando o fluxo é interrompido.

O gás também garante uma forma tentadora de pressão, e Vladimir Putin já a utilizou contra a Georgia, Letônia, Lituânia e Moldávia. Mas quando a Gazprom, a estatal que detém o monopólio, obedeceu as instruções do presidente para fechar as torneiras para a Ucrânia, a Rússia iniciou uma nova era.

À primeira vista, o contexto parece um caso clássico de um país grande levando uma nação menor à submissão. Como Tucídides menciona no seu História da Guerra do Poloponeso (conflito entre Atenas e Esparta, de 431 a 404 A.C.): ¿O forte faz o que quer fazer, e o fraco sofre o que deve sofrer.¿

A Rússia apoiou o lado derrotado na Revolução Laranja da Ucrânia há um ano, e chegou a hora do troco. Mas, como acabou acontecendo, Putin calculou mal. Subestimou tanto o poder de Kiev como o principal condutor das exportações de gás da Rússia para a Europa, como a influência do continente como o maior consumidor do gás russo. Durante o processo, ele atingiu a reputação russa de fornecedor confiável.

O resultado foi um acordo feito às pressas, no qual Rússia e Ucrânia cederam no que diz respeito aos preços que julgavam justos, e uma inexpressiva empresa instalada na Suíça, que tem metade do controle nas mãos da Gazprom, trouxe gás barato do Turcomenistão para a equação.

Alguns analistas, bem como a ex-premier ucraniana Yulia Tymoshenko, levantaram suspeitas de corrupção contra a companhia, a RosUkrEnergo.

Mas, acusações à parte, os acontecimentos indicam que o gás não é uma fonte tão fácil de hard economic power, como poderia inicialmente parecer. Alguns economistas argumentam que há pouco poder em relações em que vendedores e compradores concordam com relação ao preço. No entanto, em casos em que ambos não são igualmente dependentes da relação, a maior vulnerabilidade da parte mais dependente pode ser usada como força de poder coercitivo pela menos dependente. A Rússia pensou que era menos dependente do que a Ucrânia e decidiu exercer esse poder.

Mas é muito difícil se manter no topo em um jogo que você só joga uma vez. Para a partida seguir indefinidamente, é preciso manter a confiança dos outros jogadores. Em outras palavras, a sombra do futuro sugere que uma estratégia moderada é o melhor caminho.

A Rússia rapidamente descobriu que as ameças feitas à Ucrânia custaram muito à sua reputação como fornecedor confiável para a Europa. Se considerado esse contexto europeu, mais amplo, há mais simetria na relação Rússia-Ucrânia do que os simples números da dependência energética sugeririam à primeira vista.

Aonde isso tudo leva à segurança energética da Europa? O Ministro da Economia da Alemanha, Michael Glos, disse que a questão em torno da dependência da Rússia significa que chegou a hora de explorar outras fontes energéticas.

Não vai ser fácil. O gás é responsável por quase um quarto da energia da Europa, comparado aos 14% da matriz nuclear.

Mesmo se os governos repensarem seu veto a novas usinas nucleares, acelerarem o desenvolvimento de captadores da energia gerada pelo vento e solar, e, ainda, buscarem novas reservas de gás, a Europa vai permanecer dependente da Rússia por mais de uma década.

Ao mesmo tempo, como o maior consumidor do gás russo na Europa, a Alemanha depositou suas esperanças de segurança energética no desenvolvimento de uma ampla gama de laços econômicos com Moscou.

O ex-chanceler Gerhard Schröder chegou a ser chefe de um consórcio russo-alemão para a construção de um novo gasoduto da Rússia para a Alemanha. Mas, como o episódio envolvendo a Ucrânia indica, dutos destinados a um único país podem ser menos confiáveis do que aqueles que passam por várias nações.

Se a Rússia vai se empenhar em demonstrar força, é melhor ter aliados entre os que serão afetados. A chave para a segurança energética é a diversidade ¿ tanto de gasodutos quanto de fontes de fornecimento. Pequenos vizinhos sem opções vão sofrer, mas a Europa, talvez não.

No fim das contas, a próxima década vai ser marcada por um equilíbrio delicado no qual a Europa vai permanecer dependente do gás russo, mas a necessidade de Putin contar com os lucros vindos da exportação do produto também vai fazer o país dependente da Europa.

A lição a partir do episódio da Ucrânia é que enquanto a Rússia é menos uma superpotência do gás do que aparenta, a Europa seria sábia se começasse a construir maior diversidade no que diz respeito à relação energética. (Project Syndicate)