Título: Pobre Constituição
Autor: Alfredo Ruy Barbosa
Fonte: Jornal do Brasil, 28/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

No período de 2002 a 2005, a alfaiataria política produziu 13 ''remendas constitucionais'' à lei mais importante do País - na realidade, de qualquer país. Só no último mês, os alfaiates já conseguiram elaborar mais duas ''remendas''. Alegam que uma delas seria para recuperar a imagem do Congresso perante a opinião pública (às vésperas de novas eleições, é claro). Foi assim que, movidos por esse ''elevado'' objetivo, os congressistas reduziram o recesso (leia-se ''excesso'') parlamentar, argumentando, publicamente, que o Congresso necessitava de um prazo maior para colocar em dia a sua pauta de votação. Ora, se esse é, realmente, o intuito dos congressistas, espera-se, então, que eles passem a trabalhar de segunda a sexta-feira, como qualquer trabalhador honesto, e não apenas de terça a quinta-feira, como é notório. A ''remenda'' que está agora no forno do Congresso visa eliminar a chamada verticalização partidária nas eleições presidenciais, possibilitando, desse modo, toda a sorte de acordos entre os grupos políticos interessados em manter as mordomias dos seus mandatos. Esses artesãos da causa própria transformaram a Constituição Federal, nos últimos anos, numa ''leizinha'' banal que pode ser alterada, a qualquer momento, sob a regra do ''é dando que se recebe'', para atender tão somente aos seus interesses pessoais. Essa é a cultura dominante no atual Poder Legislativo, com raras exceções. Para a grande maioria dos políticos, espírito público é apenas um fantasma que aparece à noite numa praça pública.

No campo teórico, a constituição de um país democrático é instituída pelo povo por intermédio de representantes eleitos para compor uma Assembléia Constituinte, cujo fim específico é o de elaborar e promulgar, em nome da nação, o texto final. Mas, na prática, a realidade é bem diversa. No Brasil, o que se constata é a mais sórdida banalização do texto constitucional. Vale lembrar que a Constituição de 1988 é a recordista de ''remendas'' em toda a história da nossa República. Até o ano de 2000, a Constituição que havia recebido o maior número de emendas era a de 1946, que passou por 26 alterações no seu texto original ao longo de vinte e um anos. Já a de 1988 está quase atingindo o dobro desse número, devendo chegar, nos próximos dias, a 50 emendas constitucionais. Portanto, o que hoje temos é um ''emendão'' e não uma Constituição, tal como o desejaríamos.

Teoricamente, a constituição de um país não deve ser imutável; ao contrário, deve acompanhar a evolução social, econômica e política do país. Todavia, ela deve manter a essência do texto original aprovado pela Assembléia Constituinte. A reforma da Constituição só é possível mediante a observância de regras bastante rígidas: votação da proposta em dois turnos, em cada Casa do Congresso, e aprovação, em ambos os turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. O objetivo desse procedimento é o de preservar um dos mais relevantes princípios do regime democrático: o da supremacia da Constituição sobre todas as leis e normas de um país. A exigência de dois turnos em ambas as Casas é exatamente para dar a cada congressista a oportunidade de avaliar, com dupla cautela, qualquer mudança no texto constitucional. E a forma de aprovação da proposta de emenda por um quorum especial é para diferenciar a constituição de qualquer outra ''leizinha''.

Portanto, um ''emendão'', com cerca de cinqüenta ''remendas'' constitucionais, é, sem dúvida, uma pobre Constituição.