Título: Permanente vigilância
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 28/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

A primeira grande Encíclica social, a ''Rerum Novarum'', foi publicada no dia 15 de maio de 1891, pelo papa Leão XIII, no 14º ano do seu longo pontificado. Poucos documentos emanados da Sé de Pedro tiveram, nos últimos séculos, tamanha repercussão e gozaram de tão grande influência na Igreja e no mundo. Examinemos o contexto em que veio a lume, seus efeitos no meio eclesial e em um segundo momento, suas idéias fundamentais. Ontem, como hoje, a ''Rerum Novarum'' é de indiscutível valor. Os tempos são outros, seu ensinamento vem sendo atualizado, mas os princípios básicos permanecem válidos e oportunos, passados mais de 100 anos.

O meio ambiente dentro do qual apareceu o documento pontifício era inquietante. Já havia uma consciência generalizada das tremendas conseqüências sociais da revolução industrial, que se expandiria sob o signo do capitalismo liberal. Populações miseráveis, atulhadas em subúrbios sórdidos; as mais desumanas condições de trabalho, que requisitava também mulheres e menores; salário de fome; inexistência de mecanismos de reivindicação de justiça social, sindicatos policialmente perseguidos, carência absoluta de recursos assistenciais, o próprio Estado a serviço de uma economia violentamente competitiva, eis o panorama!

Nesse quadro, surge o socialismo, estruturado no pensamento marxista. Facilmente atraía aqueles que aspiravam a uma transformação, pelo advento de uma ordem justa. Evidentemente, a alternativa que se apresentava tinha grande poder sedutor diante do descalabro existente.

A Igreja já vinha atuando, através de iniciativas esparsas. Seus promotores tiveram em Wilheim Von Ketteler, Bispo de Mogúncia, na Alemanha, seu mais vigoroso protagonista. Leão XIII o considerava como um predecessor.

É importante notar que toda a atividade da Igreja nesse campo quer doutrinal, quer prática, desenvolvia-se antes de qualquer influência do pensamento marxista. O catolicismo social é anterior a Marx. A Encíclica ''Rerum Novarum'' veio consagrar uma posição eqüidistante dos extremos que polarizavam as divergências.

Leão XIII percebia a gravidade da situação que, inclusive, ameaçava trazer para dentro da Igreja as tensões entre capitalismo e socialismo. Elas afetavam as estruturas da sociedade civil. Os católicos já se dividiam entre ''liberais'' e ''sociais''. Os primeiros achavam que as condições de miséria eram conseqüência inelutável das leis econômicas. Assim, os próprios mecanismos de mercado haveriam de corrigí-las paulatinamente. Os outros, porém, compreendiam a urgência de profundas reformas que concretizassem as exigências sociais de sua Fé.

A Encíclica surgiu em um momento crucial. Como era de prever, dada a exacerbação do ambiente, provocou calorosos aplausos, mas também inquietações. Na verdade, chegou na hora oportuna e teve extraordinária penetração, não apenas no interior da Igreja, mas em todo o mundo. Trouxe a luz do Evangelho para muitas questões e aplicou à realidade moderna seus princípios.

Não impediu o desenvolvimento do marxismo, por não ter sido devidamente acatadas e suficientemente observadas suas diretrizes. Somente agora, com o esfacelamento do regime comunista em tantos países, veio à tona, de maneira insofismável, a falsidade dessa doutrina. Onde foi posta em prática para transformar o gênero humano, terminou melancolicamente pelo fracasso, exatamente no campo econômico. As modificações políticas são seu corolário.

Falando aos empresários do México, o Papa João Paulo II, ao lembrar o desmoronamento do regime marxista, advertiu também para os erros do capitalismo liberal. Eis suas palavras: ''Os acontecimentos da história recente a que aludi, têm sido interpretados, às vezes, de modo superficial, como o triunfo ou o fracasso de um sistema sobre outro; em definitivo, como o triunfo do sistema capitalista liberal (...). Assim, é errado apresentar o sistema que consideram vencedor como o único caminho para o mundo, baseando-se na experiência dos reveses sofridos pelo socialismo real, e rejeitando o necessário juízo sobre os efeitos que o capitalismo liberal produziu, pelo menos até ao presente, nos países chamados do Terceiro Mundo''.

A doutrina social da Igreja que teve na ''Rerum Novarum'' o seu grande impulso, não se apresenta como uma terceira via, mas fornece valiosos princípios que, observados, transformarão o quadro atual.

Leão XIII, ao denunciar as iniqüidades criadas pelo liberalismo individualista e a gravidade de propostas radicais do coletivismo socialista, teve a intuição dos dois valores básicos que devem fundamentar uma convivência digna dos povos: a Justiça e a Liberdade. Ele percebia os males cometidos em nome desta, exercida sob o signo do egoísmo; por outro lado, pressentia todas as violações dos direitos mais fundamentais que se perpetravam, em nome de um igualitarismo, o qual via no coletivismo a solução de todas as injustiças. Ele compreendia que o grande desafio da Igreja e da humanidade era uma permanente vigilância para preservar o respeito a cada um e as exigências da dignidade da pessoa humana, precisamente no exercício responsável do livre arbítrio. Esta visão de Leão XIII é o fio condutor de toda a doutrina social da Igreja.

Os sistemas liberais acabaram entendendo a impossibilidade da convivência com a iniqüidade social e consolidaram, hoje, novos regimes de democracia econômica e social. Os sistemas coletivistas que se recusaram por tanto tempo a respeitar os direitos da liberdade, inclusive religiosa, enfrentam hoje o problema de uma fragorosa implosão.

Chegou a hora de reconhecer algo muito simples: mais de 100 anos de História deram razão ao grande Pontífice Leão XIII, autor da ''Rerum Novarum''.