Título: Pródigos e corruptos
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2006, País, p. A2

Voltou o presidente Fernando Henrique a defender o governo que chefiou, e a acusar o sucessor do uso de demagogia eleitoreira. É seu direito, como homem de partido e representante de uma corrente de pensamento que se considera, em nossos dias, portadora de verdade eterna e absoluta. Ao enumerar os êxitos de sua administração, o celebrado intelectual se esquece, no entanto, do modesto desempenho nas contas internacionais; ao afirmar (e com razão) que os juros estão altíssimos, em benefício dos banqueiros, Sua Excelência se esquece que, durante seu mandato, as taxas de juros reais ultrapassaram todos os recordes.

O governo Lula não é muito diferente do governo anterior, formado pelos sumos sacerdotes da inteligência brasileira. É claro que Palocci não tem os mesmos títulos acadêmicos de Pedro Malan, nem Henrique Meirelles pode ser comparado a Gustavo Franco. Mas, para cumprir a cartilha de Washington, basta ler os textos técnicos em inglês.

Diz o ex-presidente que a corrupção hoje é sistêmica. Queira seu deus particular que as investigações sobre o governo anterior não prossigam, principalmente as que possam iluminar os lôbregos labirintos das privatizações. Queiram os anjos protetores cegar os pesquisadores que prosseguem, lentamente, no exame do esquema do Banestado, que - como confessou Gustavo Franco à CPI frustrada sobre o episódio - foi favorecido por uma portaria do Banco Central, contrariando a legislação anterior. Em matéria de pragmatismo contra as leis, o governo de Sua Excelência foi exemplar, quando não pôde mudá-las e revoga-las, criando outras que o favorecessem, mediante o ''amaciamento'' do Congresso. Ao Senado, Mendonça de Barros explicou que as privatizações não podiam ater-se à lei, porque se tratava de alguma coisa nova. Desde os legisladores do Areópago nunca se ouviu heresia tão grande contra a precedência da lei sobre os atos humanos. Como a cada dia o mundo é outro, todas as leis deveriam, nesse raciocínio, serem sempre redigidas ex post facto. Os militares, quando quiseram violar as leis, fizeram-no de forma clara, avocando o direito de revolução, e criaram os atos institucionais, sob os quais, em sua confessada arbitrariedade, tudo foi possível. Essa assunção de responsabilidade histórica foi eludida pelo grupo que governou o país durante oito anos, e se identificou como democrático.

Nenhum governo presta, conforme os anarquistas. Mas há governos que prestam menos que os outros. Diz o ex-presidente que a corrupção atual é mais grave. É provável que tenha sido mais incompetente. Uma coisa é tomar dinheiro de operadores de bingo, como fez Valdomiro Diniz, para financiar campanhas eleitorais, e ficar com algum. Outra é buscar entre os grandes empresários, pouco antes de terminar o mandato, donativos para a criação de suntuoso instituto, destinado a propagar as idéias do guia neoliberal.

Não há, até o momento, qualquer indício de que o ex-presidente tenha sido beneficiário direto de atos de corrupção, como tampouco os há incriminando o atual presidente. É certo que ele obteve, de forma nebulosa, o direito à reeleição, mas, ao que parece, quem corrompeu em seu benefício já se encontra fora do juízo dos homens.

Mas se Sua Excelência não pode, pelo que se sabe, ser acusado formalmente de concussão e corrupção, não se pode eximi-lo dos delitos de prodigalidade. Em passagem sempre lembrada de seu Testamento político, Richelieu adverte Luis XIII contra o exercício da prodigalidade, considerando-o crime maior que a corrupção. A corrupção, diz o excepcional homem de estado, tem limites; a prodigalidade, não. É fácil ser pródigo com os compradores da Vale do Rio Doce, bem de todos nós; é fácil ser pródigo com Daniel Dantas e seus sócios, oriundos da equipe governamental, ao aprovar as manobras do BNDES para garantir ao Opportunity posição privilegiada na aquisição de empresas de telecomunicações - de acordo com gravações telefônicas não desmentidas.

O governo Lula não é isento de pecados. Mas não convém acusá-lo levianamente de ladroagem. É um grave risco.