Título: Só o amor é digno de fé (I)
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2006, Outras Opiniões, p. A11

Para quem esperava uma encíclica disciplinar ou um texto que aprofundasse o conteúdo de algum dogma, a primeira encíclica do papa Bento XVI surpreende. Devo dizer que a mim, como católica, surpreende agradavelmente. Trata-se de um texto bem escrito e profundo, que deixa patente o grande teólogo que continua sendo Joseph Ratzinger, mesmo como papa. O pastor supremo que se dirige à Igreja universal é suportado em sua reflexão e discurso de maneira consistente e feliz pelo sólido teólogo que sempre foi o atual papa.

O tema da encíclica não poderia ser mais nuclear e fundamental. Trata-se do coração do cristianismo. Mais: trata-se da grande originalidade que o cristianismo trouxe para o mundo religioso e que encontrou, para explicitar quem é o Deus em que crê, a experiência humana mais importante e constitutiva dos seres humanos: o amor. Deus é amor, dirá a primeira carta de João, texto mais belo do Novo Testamento. E é essa definição que inspirará o pontífice na carta que entrega aos fiéis do mundo inteiro.

A motivação de Bento XVI para escrever sua primeira encíclica com este visceral tema é - parece-nos - extremamente oportuna. Como diz o próprio texto em sua introdução, ''dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um 'mandamento', mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança, ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto. Por isso, afirma: ''na minha primeira encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós''.

Na primeira parte de sua encíclica, Bento XVI se propõe esclarecer o campo semântico da palavra ''amor'', assim como expor sua trajetória no mundo judaico e greco-romano, a fim de delimitar bem qual a compreensão cristã na Bíblia e na tradição da Igreja. Ao fundo, evidentemente, encontra-se a preocupação do papa desde o tempo em que ainda era cardeal, à frente do Santo Ofício, sobre os rumos do mundo atual, tomado pela ''ditadura do relativismo''.

Ao longo de toda esta primeira parte procura conceituar com precisão a diferença e a interface entre ''eros'' e ''ágape''. Trata-se de tema que tem sido objeto de alentados estudos de filosofia e teologia em todos os tempos. Entretanto, o tratamento dado por Bento XVI é reconhecidamente preciso e adequado, trazendo à tona toda a cultura filosófica, filológica e teológica daquele que escreve. A antropologia que aparece ao fundo da reflexão é integrada, não separando espírito de carne e sobretudo não desprezando este em benefício daquele.

De certa maneira, portanto, o papa resgata toda a positividade do eros, reconhecendo a inelidibilidade de sua presença como componente constitutivo da dinâmica do amor humano. Porém acrescenta que ''embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente - fascinação pela grande promessa de felicidade - depois, à medida que se aproxima do outro, fará cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará 'existir para' o outro''. Assim se insere nele o momento da ágape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza.

A primeira parte da encíclica destina-se, portanto, a derrubar alguns preconceitos que viam o cristianismo como destrutor do eros. Situar a correta perspectiva na concepção da ágape como amor que sai de si na entrega e na doação para fazer o outro feliz. Numa época em que as relações amorosas caminham sobretudo na direção da busca da própria felicidade antes de qualquer outra coisa, a fé cristã proclama que amar é justamente sair de si e buscar a felicidade do outro. Só assim existe amor verdadeiro e felicidade possível.

Entretanto, continua o papa, o ser humano não poderia dar-se, sair de si, sacrificar-se abnegadamente no exercício de amar se não recebesse, também, amor. O amor só pode acontecer em sua forma agápica se existe uma fonte de onde bebe incessantemente. Essa fonte é Deus. Por que Deus nos amou primeiro, podemos então amar gratuita e oblativamente, pois sempre estará disponível para nós a fonte divina jorrando incansavelmente Seu infinito amor. ''O mandamento do amor - coração do cristianismo - só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser um imperativo porque antes nos é dado.'' Portanto, só ele é digno de fé, porque é o próprio conteúdo da fé.