Título: O choque da civilização
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 31/01/2006, Internacional, p. A10

Ocidente e Oriente tiveram ontem mais um embate de civilizações, no qual defenderam valores intrínsecos de suas sociedades: a liberdade de imprensa e o respeito à religião, respectivamente. Em vários países do mundo árabe e na Faixa de Gaza, multiplicaram-se protestos contra charges, publicada em jornais da Dinamarca e Noruega, que retratou o profeta Maomé como um terrorista. Na Indonésia, centenas de muçulmanos foram às ruas se manifestar contra o lançamento da revista Playboy.

O protesto mais tenso foi o de Gaza, onde homens armados e encapuzados ocuparam por uma hora as instalações da União Européia. Na rua, outro grupo atirava para o alto, exigindo desculpas dos governos dinamarquês e norueguês.

- Alertamos aos cidadãos destes países para levarem este aviso a sério - afirmou um manifestante.

Só o fato de retratar Maomé já é um desrespeito, na visão do Islã. Caricaturas são consideradas mais graves: uma blasfêmia. Copenhague, no entanto, defende a charge, na qual o profeta usa um turbante que se parece com uma bomba, com o pavio aceso. O primeiro-ministro, Fogh Rasmussen, afirma que o jornal Jyllands-Posten é independente e livre para reproduzir o conteúdo que lhe convier. O mesmo argumento é usado pela Comissão Européia em apoio à Dinamarca:

- A liberdade de expressão e de imprensa é direito fundamental que a Comissão respeita e defende. Não significa que a charge nos agrade, mas devemos aceitá-la - explicou o porta-voz, Johannes Laitenberger.

Mas cauteloso com a ameaça, o governo escandinavo aconselhou seus cidadãos a não visitar a Arábia Saudita - onde é professada a visão mais radical do Islã, wahabita - e a tomar cuidados nos demais países islâmicos.

''Na situação atual, em que desenhos do profeta Maomé provocaram reações bastante negativas, os dinamarqueses no exterior devem tentar ser discretos'', recomenda um comunicado do Ministério de Relações Exteriores.

Em resposta, a Arábia Saudita chamou de volta seu representante diplomático na Dinamarca e estuda a suspensão das importações. A Organização da Conferência Islâmica - o maior grupo político muçulmano do mundo, presente em 57 países - também pediu um boicote total. Medidas semelhantes estão sendo propostas nos parlamentos do Kuwait, de Bahrein - onde já houve queima de produtos - e em Dubai. A Líbia, por sua vez, fechou a embaixada em Copenhague e a Liga Mundial Muçulmana enviou carta ao secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan.

Em Gaza, os militantes ainda atearam fogo em bandeiras da Dinamarca e da Noruega. Em Qalqilya (Cisjordânia), outros milhares de manifestantes marcharam por um pedido de desculpas. Grupos ligados à facção Fatah - do presidente palestino, Mahmoud Abbas, e derrotada pelo Hamas nas eleições legislativas do dia 25 - divulgaram um comunicado pedindo ''aos cidadãos dinamarqueses na Palestina que saiam imediatamente''. A Cruz Vermelha Dinamarquesa obedeceu e saiu de Gaza e do Iêmen.

Até no Iraque o assunto repercute. O grupo Exército de Mujahideen, liderado pelo jordaniano Abu Musab Al Zarqawi, divulgou comunicado com ameaças: ''boicotar o queijo e outras coisas é pouco. Eles devem começar a encarar as responsabilidades desse ato''.