Título: Passo importante contra a pirataria
Autor: Sérgio Bandeira de Mello
Fonte: Jornal do Brasil, 09/02/2006, Opinião, p. A7

A sociedade brasileira viu crescer nas últimas décadas uma erva daninha que lhe tolhe os passos no rumo do bem-estar e do crescimento econômico. Como um cancro que aos poucos fragiliza o organismo, a pirataria se propaga pelos diversos segmentos da vida social, valendo-se não apenas das brechas na regulamentação e das precariedades nos sistemas de fiscalização, mas também de uma tolerante banalização das atividades informais. As pessoas se habituaram com a informalidade, não se assustam com a venda de produtos pirateados de todo tipo e não têm noção do prejuízo que essas práticas impõem ao nosso país. Mas há segmentos em que a pirataria é ainda mais prejudicial, pois afeta não apenas a economia como também a segurança do consumidor, podendo gerar acidentes graves. Este é o caso dos botijões de GLP, popularmente conhecido como gás de cozinha, que abastece 95% da população brasileira, em 100% dos municípios. O sistema instituído no Brasil pelas empresas distribuidoras assegura ao consumidor, no momento da compra, o direito de receber sempre um botijão em perfeitas condições, da marca de sua escolha, em troca do seu botijão vazio de qualquer marca. Para isso foram implantados centros de destroca onde cada distribuidora deposita os recipientes de outras marcas e retira igual quantidade de vasilhame de marca própria, procedendo então a uma rigorosa manutenção dos seus botijões, antes de enchê-los de gás novamente para que eles voltem às residências dos consumidores. Esse sistema exigiu investimentos de mais de 1 bilhão de reais nos últimos dez anos, requalificando ou substituindo boa parte dos 99 milhões de botijões que hoje circulam no país.

Onde mora o perigo? Nos últimos anos algumas empresas resolveram adotar artifícios jurídicos, utilizando argumentos duvidosos para obter decisões judiciais que as autorizem a comercializar GLP em botijões de outras marcas. Em qualquer produto, usar embalagem de outra marca sem autorização atenta contra a Lei de Propriedade Industrial e outros dispositivos legais. Mas no caso do GLP, que exige rigorosos procedimentos de segurança, tal irregularidade assume proporções muito mais graves, pois coloca em risco a própria vida do consumidor.

As empresas que utilizam botijões de outras marcas nunca poderão ser responsabilizadas em caso de fraude ou de sinistro, pois o consumidor não terá como provar quem forneceu aquele produto. Comercializando seu gás em vasilhame de outras marcas, não investem na compra de novos botijões nem na conservação dos recipientes de outras marcas por elas usados. Colocando em risco a segurança dos usuários, elas buscam obter vantagens competitivas importantes, crescendo sem investir, mas o custo para a sociedade é bastante alto. Embora essa prática, conhecida como O.M. (¿outras marcas¿), ou ¿botijão pirata¿, e repudiada internacionalmente, seja proibida pela ANP, cuja Resolução 15/2005 reafirma a importância da marca como garantia de rastreabilidade e responsabilização da empresa distribuidora, existem ainda hoje decisões judiciais em vigor permitindo a duas empresas o enchimento de botijões de outras marcas.

Recentemente, este quadro preocupante começou a mudar. A ação cautelar que havia sido movida por uma empresa contra as normas da ANP foi julgada improcedente em sentença judicial na qual ficou confirmado, de forma contundente, que o uso de botijões de outras marcas é um risco para o consumidor e um desrespeito ao direito marcário. A mesma sentença deixa claro que, muito acima do interesse de empresas, o cumprimento das normas vigentes visa à defesa dos direitos do consumidor, que não podem ser negligenciados.

Inconformada, a empresa interpôs embargos à decisão, numa clara manobra protelatória, e levantou dúvidas de que a liminar continuava em vigor. No dia 1o de dezembro, a apreensão de duas carretas pela Polícia Civil de Paulínia (SP), com cerca de 1.500 botijões de outras marcas envasados ilegalmente, deixou evidente o desrespeito daquela empresa ao Poder Judiciário e às determinações da ANP. No dia 13 de dezembro, o recurso foi rejeitado pela Justiça, que expressamente decretou o fim da liminar. Em 13 de janeiro, a ANP interditou as instalações da distribuidora, onde os fiscais apreenderam 287 botijões de outras marcas prontos para serem comercializados, e no dia 24 uma notificação da Justiça determinou a desinterdição, havendo agora a expectativa de que, com a fiscalização policial e da ANP, a empresa finalmente deixe de praticar aquela operação ilegal.

A ANP já tem nas mãos decisões fortes em favor de suas normas e precisa ser mais incisiva neste processo e nos outros ainda existentes, para extinguir definitivamente a prática absurda dos botijões piratas. Além disso, é fundamental que a agência tenha recursos para intensificar a repressão das irregularidades. Entre outros ajustes no marco regulatório, é urgente eliminar brechas como as que permitiram decisões judiciais contrárias às normas da agência reguladora.

A continuidade da atitude firme por parte dos poderes públicos contra a pirataria no setor de GLP trará maior confiança dos consumidores e do empresariado, como um sinal positivo de que as artimanhas da ilegalidade podem ser contidas em nosso país. Somente com instituições fortalecidas e um sistema de fiscalização eficiente poderemos romper os vícios da cultura da informalidade e da corrupção. Adotar padrões éticos mais rígidos, sem qualquer tolerância com a concorrência desleal, é um desafio de todos os setores, no sentido de promover a competitividade, assegurando um ambiente saudável de desenvolvimento econômico e a justiça social.

Presidente do Sindigás (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo).