Título: Mar turbulento
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 09/02/2006, País, p. A2

A oposição está perdendo o discurso, não por que lhe falte arroubo oratório mas pelo cansaço dos ouvidos. Manter os ouvidos atentos aos mesmos vocábulos e às mesmas idéias não é próprio das massas. Para mantê-las atentas é necessária a modéstia da súplica, como a de Marco Antonio, nos funerais de César, ao pedir aos cidadãos romanos que lhe emprestassem os ouvidos para acolher os argumentos contra Brutus. E suplicar não é bem um costume desses sábios políticos de São Paulo que mandam no PSDB e no PFL. E, por perder o discurso, a oposição se apressa. Os tucanos, que se jactam de ter os melhores quadros políticos do país, descobrem que só dispõem de um deles em condições de confrontar-se com Lula: o prefeito José Serra. E como recorremos ao mais genial dos escritores políticos, Shakespeare, podemos sair do enterro de César em Roma e ir à Dinamarca, para ilustrar o que parece ser (e pode não ser) a indecisão de Serra.

Hamlet, na citação que se tornou lugar-comum, entre as dúvidas que o assaltam, depois da indagação sobre ser e não ser, pergunta se é mais nobre, em sua consciência, sofrer o ataque da funda e das setas de uma sorte ultrajosa, or to take arms against a sea of troubles, and by opposing end them?

Pode ser que Serra avalie o estado do mar e hesite, porque os sinais de turbulência oceânica são evidentes. E não falta quem o desencoraje, como faz o ex-presidente Fernando Henrique, ao insistir em que sua candidatura representará a troca do certo pelo duvidoso. Mas é também provável que Serra se nutra do embornal da astúcia, a fim de que possa negociar com vantagem as condições em que aceitará o risco. Quem negocia, em circunstâncias semelhantes, costuma exagerar os perigos a fim de obter o máximo de concessões. As acusações contra o governo Lula não pegaram. E não pegaram antes as que se fizeram contra o de Fernando Henrique, reeleito apesar de todas as evidências de uma administração temerária e de prodigalidade ilimitada. É mesmo provável que o povo tenha a nostalgia dos reis, e, havendo reeleição, prefira o mal conhecido ao bem duvidoso. Desta forma, a menos que o prefeito de São Paulo ouse saltar o círculo de giz dos compromissos de seu partido com a postura neoliberal, e se apresentar, ao mesmo tempo contra Lula e contra a doutrina econômica da genuflexão, ainda em vigor, suas chances de vitória serão escassas.

Ao perder o discurso, Fernando Henrique engrossa a voz e diz: ''Agora é guerra''. Se a guerra é contra o torneiro mecânico, que, a juízo de seus inimigos, comete repetidas gafes diplomáticas, e não conhece gramática, é quase certo que a perca. Como podem comprovar os leitores de eminentes sociólogos, muitos intelectuais tampouco a conhecem. Na verdade, o povo está cansado dos políticos tradicionais, mas, por estranha percepção, que cabe aos sábios explicar, Lula não é visto como um deles. Sua imagem de outsider, de sertanejo rude, de suburbano, serve para diferenciá-lo em universo dominado pelos oligarcas e seus cooptados.

Disse também o ex-presidente que esperava o chamado de Lula aos tucanos, a fim de se coligarem com o governo. Houve essa coligação entre contrários, em 1945, quando Dutra convocou a UDN a compor o Ministério. Essa conciliação produziu um governo morno, que planejou bem (com o Plano Salte) e pouco executou. A segunda coalizão ocorreu com Tancredo e a Frente Liberal, mediante a Aliança Democrática. Nos dois casos, o Estado saía de uma situação ditatorial, que recomendava cautela e renúncia, em nome da transição. A menos que considerássemos ditatorial o governo passado, não havia por que essa coalizão, depois da vitória de Lula. Fernando Henrique não disse o que talvez esperasse de tal acordo: a renúncia de Lula e do PT à reeleição e o apoio a um tucano, neste ano de 2006. O leitor pode imaginar em que nome pensava o excelso príncipe.

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Nota do colunista: No texto publicado ontem, nesta coluna (O Deus de cada um), a revisão converteu necedade em necessidade, invertendo o sentido da frase. Leia-se, por favor: ''É, portanto, necedade identificar os povos muçulmanos como primitivos''.