Título: Paz à força em país de futuro incerto
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 05/02/2006, Internacional, p. A11
Para brasileiros que integraram a Força de Paz da ONU no Haiti, a realização de eleições no país está muito longe de ser garantia de avanços. Testemunhas oculares da miséria em que a nação se encontra, militares voltam ao Brasil com a certeza de que não há futuro possível enquanto não houver uma mobilização internacional para dar um nível decente de vida aos haitianos. Também trazem a desconfiança que ainda impera entre as tropas: a de que, nos bastidores da Minustah, o general Urano Teixeira da Matta Bacellar, de 57 anos, não se matou no último dia 7. Foi assassinado.
- Esse país não tem governo, não tem fonte de renda, e a população acha que os bandidos vão lhes dar algo. Por que a ONU não pega parte do dinheiro dessa missão e investe no país? - questiona um militar do Exército brasileiro de 23 anos, de volta ao Brasil desde novembro, depois de seis meses em missão.
O rapaz, que falou ao JB na condição de não ser identificado, está convencido de que boa parte da violência que impera no país está diretamente ligada à falta de perspectiva da população. Também está certo de que o nome ''Missão de Paz'' está, no mínimo, equivocado.
- O que a missão faz é impor a paz à força. Há um nome técnico para isso: viemos para ''imposição de paz''. Mas a ONU se recusa a reconhecer. Está errado. - diz o rapaz. - As gangues nos enfrentam com munição igual à nossa (762), e os Urutus saem com a .50, uma metralhadora de guerra.
Foi num confronto de cinco horas que o jovem militar quase morreu. Tinha acabado de chegar ao Haiti e saiu em campo com outros sete colegas em um Urutu, o carro blindado brasileiro. O grupo - três veículos ao todo - foi deslocado para uma favela onde outros 20 homens estavam encurralados por bandidos. Os Urutus só conseguiram sair da favela depois de tropas jordanianas intervirem:
- Na Missão de Paz, é assim: para você voltar para casa, tem de matar. É impossível passar seis meses lá e dizer que não matou ninguém.
O jovem ainda faz questão de contar a desconfiança que circula no chamado ''Estado-Menor'', gíria militar que se refere às patentes mais baixas.
- Essa história de suicídio (do general Urano)... O que se comenta é que isso foi inventado para encobrir o que realmente aconteceu: um militar brasileiro teria sido o responsável pela morte.
Outro militar, da Marinha, de volta ao Brasil desde dezembro, concorda com o companheiro do Exército quanto à falta de perspectiva do Haiti. Para ele, o pleito não vai mudar nada, e o perigo continuará camuflado num país tão pobre que ''a classe média não tem energia elétrica, nem saneamento básico''.
- Lá, ao contrário do Rio, por exemplo, é difícil você distinguir quem é o cidadão comum e quem é bandido. Você não sabe de onde o perigo pode vir. A miséria está por todos os lados. - contou o militar de 26 anos.
Ainda assim, ao contrário do capacete-azul do Exército, ele voltou certo de ter amadurecido com a experiência.
- Em nosso adestramento, nossos verbos são destruir, eliminar, matar. Aí, você chega lá e tem de prover segurança e estabilidade àquela gente, - explica, lembrando que as tropas do Exército estão na frente de batalha, e, naturalmente, passam por mais pressão.