Título: O Deus de cada um
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 08/02/2006, País, p. A2

A razão ocidental considerou exagerada a irada defesa muçulmana de seu Profeta, contra os desenhos que o caricaturaram na Dinamarca. Há duas formas de ver as religiões no mundo: a teológica e a histórica. Temos, os ocidentais - a partir de Agostinho, passando por Tomás de Aquino e chegando aos pensadores contemporâneos -, a preocupação de encontrar explicações lógicas para confirmar a existência de Deus. Em uma das aventuras do padre Brown, The blue cross, Chesterton faz o suave e astuto sacerdote desmascarar falso colega, com o argumento de que ele desprezara a lógica, e desprezar a lógica é má teologia. Os muçulmanos, que tanto contribuíram para a lógica ocidental, não têm tanta preocupação em explicar a fé com os recursos da razão. Ela se codifica e se justifica no Alcorão - aquilo que deve ser lido. Tal como outras grandes religiões, o islamismo é um contrato com o Absoluto, que, em seu caso, se identifica em Alá. Por esse contrato, o crente aceita as cláusulas de conduta, que as escrituras estabelecem, e, em troca, tem direito à paz eterna. O que os torna bem diferentes, em nossa visão, é a obediência rigorosa aos preceitos religiosos, apesar da divisão política entre xiitas e sunitas. E é singularmente notável sua tolerância com a crença dos outros. O vice-presidente de Saddam, Tarik Aziz, é católico.

O islamismo foi o grande veículo para a expansão dos povos árabes rumo ao Ocidente. Houve, então, a combinação dialética: a fé os levou ao Maghreb, e do Maghreb à Espanha Meridional, à África e à Ásia. Em todos esses movimentos, a expansão religiosa foi maior do que a étnica, com a conversão paulatina dos povos.

Os mesmos muçulmanos que consideramos bárbaros em certos costumes, como o da mutilação das mulheres, inaceitáveis em nossa visão de mundo, trouxeram para o Ocidente conhecimentos científicos que nos possibilitaram construir a sociedade moderna. O que seria, só para um exemplo, a ciência sem os algarismos árabes? É, portanto, necessidade identificar os povos muçulmanos como primitivos. Do ponto de vista histórico, somos devedores de sua alta contribuição ao desenvolvimento das idéias que, vindas do Oriente, passaram pela Grécia, conservando-se nas margens do Mediterrâneo durante os altos tempos medievais, para reocupar a Europa, entre os séculos 10 e 15, e possibilitar o surgimento da Idade Moderna.

O que está em discussão é mais profundo do que a História. É a fé. A fé é a identidade mais forte dos seres humanos: é a ligação com aquelas razões da vida que a ciência jamais conhecerá. Podemos saber, amanhã, como o mundo surgiu - e o big-bang é apenas uma hipótese entre outras -, mas, jamais, por quê: o porquê só podemos intuir com a fé. A fé, para expressar-se, necessita de símbolos. No caso dos muçulmanos, a não imagem de Alá e a não imagem do Profeta são símbolo maior: os homens não podem profanar a fé com a reprodução das figuras divinas.

Há alguns anos, um infeliz pastor, a serviço da rendosa seita de Edir Macedo, escoiceou a imagem de Nossa Senhora diante de milhões de espectadores de uma emissora de televisão. Os católicos reagiram, e com toda razão. Não interessa à fé saber se a imagem de Maria é autêntica, ou não. É uma forma de reverenciá-la, como reverenciamos os nossos antepassados e deles guardamos retratos. Ao escoicear a estátua, o pastor escoiceou todos os católicos brasileiros. Era o que pretendia, em seu fundamentalismo menor.

Não há explicações para o sentimento religioso, a não ser aquela certeza lógica de que nunca saberemos de onde viemos. O título do livro de memórias de Zélia Gattai, Anarquistas, graças a Deus, é revelador dessa fé, às vezes discreta, mas sempre presente. E para que sejamos respeitados em nossa crença, ou em nossa descrença, temos o dever de respeitar o outro, em seu contrato particular com o Absoluto. A fé não é separada de nós. Ela está em nós, porque Deus está em nós; quando respeitamos o outro, respeitamos a sua fé - ou a sua descrença. Dizia Juarez que ''el derecho ajeno es la paz''. Sobretudo o direito de crer.