Título: O problema dos acidentes do trabalho
Autor: Wagner Balera
Fonte: Jornal do Brasil, 13/02/2006, Economia & Negócios, p. A18

Há algum tempo, o governo se mostrou empenhado em encontrar solução para o grave problema dos acidentes do trabalho. Seminários, mesas-redondas e projetos foram elaborados. O assunto, porém, subitamente saiu de cena. A Constituição não opõe qualquer empecilho formal para que certo setor da seguridade social venha a ser objeto de exploração, parcial ou total, da iniciativa privada (matéria na qual impera ampla e discricionária liberdade de decisão política do legislador). Por isso, as propostas que vinham sendo elaboradas propunham, inteligentemente, que o risco acidentário do trabalho fosse gerido por seguradoras privadas.

Tal proposta rima com a Constituição, que determinou, de modo expresso, que fosse institucionalizado um plano especial e específico de custeio e de prestações acidentárias.

Pode haver, entre o público e o privado, lugar legítimo para a construção de um modelo sólido de proteção social.

O que não podemos seguir assistindo é a utilização dos recursos gerais, carreados ao orçamento da seguridade social, para financiamento das prestações decorrentes de acidentes de trabalho cujo custeio deve ser feito exclusivamente por empresas.

A nova carteira de acidentes, desatrelada da previdência social, permitiria maior transparência em um setor no qual a prevenção é mais importante do que a reparação.

Admitiria, além disso, legítima disputa de mercado entre seguradoras, aptas a incentivarem os clientes que investissem na prevenção.

Sabe-se que o número de acidentes é alarmante. Mas, tal número é desconhecido por todos, porque convivemos com a notória subnotificação.

As estatísticas oficiais, já um pouco ultrapassadas, dos organismos internacionais situavam o Brasil como campeão mundial dos acidentes do trabalho.

No entanto, o Anuário Estatístico de Acidentes elaborado pelo Ministério da Previdência Social registra pouco mais de 450 mil ocorrências em sua última versão, pouco mais da metade do número registrado em 1999. Poderíamos aplaudir, não é mesmo? Afinal, oficialmente os acidentes estariam em queda livre. Prosseguindo nesse ritmo, dentro de cinco anos, o Brasil teria saído da pole position para o último lugar.

Infelizmente, ainda nesse caso, tais estatísticas não podem ser levadas a sério. O criterioso professor José Pastore anota que cerca de 80% dos acidentes não são notificados. Portanto, o número oficial representa um quinto da realidade.

Recentemente, o Conselho Nacional de Previdência Social expediu norma que poderá aprimorar os controles estatais sobre o assunto, possibilitando às empresas que, de fato, venham a investir na proteção, significativa redução das alíquotas.

Percebo que tal providência, no entanto, não é suficiente. Faltam estruturas efetivas de controle estatal para o acompanhamento da realidade social. De fato, a solução, preconizada pelo engavetado projeto elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, da institucionalização das Administradoras de Riscos do Trabalho (ARDAT) parece mais ajustada aos tempos modernos.

O perfil de cada empresa será registrado na apólice e as experiências acumuladas dos riscos, como em qualquer seguro, determinará os custos a serem cobertos. Quem investir em prevenção terá, em contrapartida, redução no prêmio a ser pago no seguro acidentário que contratar.

Convém, é claro, que os trabalhadores, as principais vítimas dos acidentes do trabalho, por intermédio de suas organizações de classe, fomentem o oportuno debate sobre tal matéria.

O contrato a ser celebrado entre as empresas e as seguradoras deve ser revestido de características especiais, diante da notória relevância pública do assunto e da necessidade de boa, eficiente e transparente gestão de tão importante carteira.

Quem sabe não seja esse um tópico de discussão para o novo Plano Diretor do Sistema de Seguros, que se configura como o marco regulatório para esse tão importante setor da economia nacional.

O mercado segurador privado vem crescendo, notadamente no segmento previdenciário, já representando mais de 3% do PIB. Mas seu ritmo de crescimento, se comparado com o de outros países, onde a participação no PIB oscila entre 6% e 10%, poderá acelerar com a implementação dessa modalidade diferenciada de cobertura.

Ao ser investido, pela coletividade, do poder-dever de controlar o vínculo entre seguradora e empresa, o poder público poderá, igualmente, cobrar controle mais eficiente do risco coberto, beneficiando a população protegida.

Talvez com esse mote, todo o sistema nacional de seguros privados possa passar por uma revitalização, com estrutura de gestão consentânea com o Estado moderno.

Um contrato de gestão, tal como já existente entre as modernas agências reguladoras e o poder público, poderia disciplinar os controles da atividade de seguro acidentário. Seu compromisso seria adotar o sistema de tarifação risco a risco, com graduação progressiva sempre que o índice de acidentes ocorridos na empresa tomadora superasse o índice médio do setor e de manutenção do controle de sinistralidade.

O contrato de seguro a ser comercializado junto aos empregadores, por seu turno, estaria regulado por cláusulas obrigatórias de estímulo a investimentos em segurança do trabalho e de boa conservação do meio ambiente de trabalho.

As condições de rescisão do contrato, nos casos de descumprimento das estipulações obrigatórias, deveriam ser comunicadas à agência reguladora, para fins de controle e providências punitivas.

Superpõe-se, assim, o componente social ao mero esquema privado de operação de um negócio lucrativo.

O contrato de seguro de acidentes cumpre missão social que não pode ser descurada, pelo Estado, pelo segurador ou pelo empregador.

No rumo da reprivatização, o produto ¿seguro contra acidentes do trabalho¿ haverá de submeter-se, como parece curial, aos ditames da economia de mercado, assim no que concerne aos prêmios a serem cobrados pelas seguradoras como no que atina às condições em se dará o resseguro, elemento indispensável em operações de tão grande vulto.

Em suma, que na transferência para o setor privado desse importante serviço público não ocorra aquilo que ironicamente repelia Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira quando lhe falavam da privatização da previdência social: ¿querem privatizar o lucro e socializar o prejuízo¿.

*Wagner Balera é advogado previdenciário em São Paulo, professor titular de direito previdenciário da Faculdade de Direito da PUC/SP e procurador aposentado do INSS.