Título: Só o amor é digno de fé
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 13/02/2006, Opinião, p. A11

Continuando nossa reflexão e comentário sobre a primeira encíclica do pontificado do Papa Bento XVI, tomamos agora a segunda parte, na qual o pontífice reflete e disserta sobre a caridade cristã, manifestação do amor de Deus que é Ele mesmo amor e comunhão de amor: Pai, Filho e Espírito Santo. O Papa inicia esta segunda parte de sua encíclica recordando uma frase do grande Agostinho de Hipona, talvez o maior gênio do Cristianismo: ''Se vês a caridade, vês a Trindade''. Com isso já dá a perspectiva de sua encíclica, que vai ressaltar a dimensão do amor cristão enquanto ajuda e serviço ao outro, sobretudo ao mais necessitado. Isto será a única coisa que no mundo poderá ser reflexo e imagem do amor que é Deus.

Ao fazer um percurso sobre a prática da caridade na história da Igreja, o Papa destaca alguns textos dos Santos Padres de escolha bastante feliz, a nosso ver. Entre eles, destacamos sua citação de Tertuliano, escritor cristão do século 3, na qual conta como a solicitude dos cristãos pelos necessitados de qualquer gênero suscitava a admiração dos pagãos (n. 22) e ao imperador Juliano, o Apóstata, do século 4, pagão escandalizado com a brutalidade e a violência usada pelos soldados do imperador cristão Constâncio no assassinato de várias pessoas, inclusive membros de sua família, e que terminará por escrever que o único aspecto do cristianismo que o maravilhava era a atividade caritativa da Igreja (n. 25).

Assim a encíclica continua desenvolvendo a idéia de que o cristianismo não concebe uma fé que não opere pela caridade. Aquele que crê é necessariamente levado ao amor caritativo, pois sua experiência de fé o fará aproximar-se e beber da fonte do amor que é o próprio Deus. E só o testemunho de sua caridade fará digno de fé seu estatuto de cristão. Por isso, o fato de na comunidade cristã haver membros que passem necessidade é um grande escândalo que só depõe contra o cristianismo. Esse escândalo é denunciado pelo Papa em sua encíclica.

A encíclica admite que a luta pela justiça é parte constitutiva da atividade caritativa da Igreja. E afirma que se ''na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações - face ao progresso em ato - devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente com o homem e o seu mundo'' (n. 27). Admite igualmente a necessária conexão entre fé e política. Se as exigências da caridade feita luta pela justiça assim o exigirem, a intervenção na ''polis'', o exercício da administração da cidade e da sociedade é plenamente legítima para um cristão.

Admitindo, no entanto, a possibilidade de a Igreja exercer sua ação caritativa e sua luta pela justiça em parceria e colaboração com outras instâncias da sociedade, o Papa se preocupa em caracterizar bem o que é a caridade cristã e o que não. Para um cristão, sua atividade caritativa deve ser iluminada pela fé, que por sua vez funciona como purificadora da razão. A doutrina social católica, portanto, não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado, nem pretende impor aos que não compartilham da fé cristã atitudes e comportamentos que pertencem a esta. Portanto, o Papa vai concluir que, se a Igreja não deve tomar o lugar do Estado na batalha política pela sociedade mais justa, tampouco pode ficar à margem desta. A luta pela justiça é constitutivamente componente da vida e da caridade cristãs.

No entanto, continua, há outros serviços que não têm um impacto de eficácia imediato sobre a justiça social e que também não podem estar ausentes do horizonte cristão, já que são expressões privilegiadas do amor. A encíclica enumera toda a lista dos atos que o amor inventa para aliviar o sofrimento humano e que não têm retorno algum aparente e imediato: consolar os infelizes, cuidar dos doentes, enterrar os mortos e muitos outros.

A encíclica conclui definindo as características da caridade cristã: ''segundo o modelo oferecido pela parábola do bom samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc.'' (n.31). Mas também e inseparavelmente deve dar testemunho d'Aquele que é sua fonte e condição: Deus, experimentado e definido pelo cristianismo desde sempre como Amor.