Título: Deus é amor
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 11/02/2006, Outras Opiniões, p. A11

No ano passado, o mundo pôde avaliar a importância da figura do Papa, independentemente de sua missão estritamente confessional. A agonia, a morte e as exéquias do Papa João Paulo II e a eleição de Bento XVI, retransmitidas pelo mundo, foram acompanhadas em todo o universo. A 25 de janeiro é publicada no Vaticano a primeira Encíclica de Bento XVI. A cobertura dada pelos meios de comunicação social revela o interesse despertado por toda a parte.

A Encíclica é uma maneira de o Sucessor de Pedro exercer o seu Magistério. Normalmente se dirige aos católicos, com um conteúdo confessional. Outras vezes, a matéria interessa aos seguidores de outras crenças ou mesmo aos alheios a temas religiosos, como é o caso da recente publicação. Esse documento ''Deus é Caridade'' (''Deus é Amor'') sobre o amor cristão, data de 25 de dezembro, Solenidade do Nascimento de Jesus e a divulgação ocorreu a 25 de janeiro, quando a Liturgia celebra a Conversão de São Paulo. A primeira parte trata da ''A unidade do amor na Criação e na História da Salvação''. Diz o Papa: ''O termo 'amor' tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes'' (nº 2). Diz o documento: ''Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor - eros, philia (amor de amizade) e ágape - os escritos neotestamentários privilegiam a última'' (nº3) (...). ''O eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser'' (nº 4). Dessa rápida visão sobre a concepção do eros na história e na atualidade, resulta que o caminho a seguir ''não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessários purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu ''envenenamento'', mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza'' (nº 5). E adiante: ''O eros degradado a puro 'sexo' torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma 'coisa' que se pode comprar e vender (...) ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem um ser em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar 'em êxtase' para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos'' (Ibidem). ''Deste modo, o eros é enobrecido ao máximo, mas simultaneamente tão purificado que se funde com a ágape'' (nº 10).

A Encíclica em sua segunda parte trata da ''Caritas'' - a prática do amor pela Igreja enquanto ''Comunidade de amor''. Esse outro aspecto vem mostrar que ela é profundamente humana e leva o cristão a se preservar com toda a humanidade. ''Portanto, é amor o serviço que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e às necessidades, mesmo materiais, dos homens. É sobre este aspecto, sobre este serviço da caridade, que desejo deter-me nesta segunda parte da Encíclica'' (nº 19), diz o Santo Padre. Trata-se de um dever de cada fiel e da comunidade eclesial inteira. ''A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (''kerygma-martyria''), celebração dos Sacramentos (''leiturgia''), serviço da caridade (''diakonia''). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência'' (nº 25).

Ao tratar da Justiça e Amor caridade, o Papa aborda a justa ordem do Estado como dever central da política. ''A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela Justiça'' (nº 28). ''O dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos'' (nº 29).

Sobre as múltiplas estruturas do serviço caritativo no atual contexto social, aborda a situação geral do empenho pela Justiça e o amor no mundo atual. A presença dos meios de comunicação social merece do Vaticano II a seguinte observação: ''No nosso tempo, em que os meios de comunicação são mais rápidos, em que quase se venceu a distância entre os homens, (...) a atividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens'' (Apostolicam Actuositatem, nº 8). Por outro lado, o processo de globalização ''põe à nossa disposição inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos necessitados'' (nº 30).

Sobre o perfil específico da atividade caritativa da Igreja, aumenta o número de organizações diversificadas, que se dedicam ao homem em suas várias necessidades. A força do cristianismo propaga-se muito para além das fronteiras da fé cristã. Por isso, diz a Encíclica, ''é muito importante que a atividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma'' (nº 31). O modelo oferecido é a parábola do bom Samaritano. Não é apenas dar o material, ''mas uma conseqüência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (...). Deve ser independente de partidos e ideologias (...) não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo'' (Idem).

Ao tratar de ''Os responsáveis da ação caritativa da Igreja'', coloca-a como integrante de sua própria estrutura. A síntese é o hino à caridade de São Paulo (1Cor 13). ''Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita'' (v.3). Diz o Santo Padre: ''Nele se encontram resumidas todas as reflexões que fiz sobre o amor, ao longo desta Carta Encíclica'' (nº 34). Eis o caminho traçado pelo Sucessor de Pedro. Vamos segui-lo.