Título: Desordem jurídica
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 04/02/2006, Opinião, p. A11

''Não existe pior desordem do que a injustiça''. Com essa ponderação, Maurice Duverger, eminente jurista francês, denuncia e condena a ordem aparente, a utilização de leis e decisões jurídicas para o acobertamento de injustiças, sob pretexto de garantir a ordem e proteger as instituições. Está ocorrendo hoje no Brasil uma situação de desordem, envolvendo os órgãos de cúpula do Legislativo e do Judiciário, muitas vezes acarretando injustiças inspiradas em interesses pessoais e motivação política mas tentando esconder-se atrás de um aparente rigor na aplicação da lei e na defesa de princípios jurídicos constitucionais. Esse comportamento tem conseqüências graves, pois aqueles órgãos atuam como modelos que vão influir sobre a formação de mentalidades e a avaliação das instituições fundamentais da República, gerando a idéia de que o seu modo de agir é o padrão de normalidade do povo brasileiro e, pior ainda, dando pretextos para os que, de má fé, também querem esconder-se atrás de biombos jurídicos para a prática de corrupção e a promoção de injustiças. Neste momento de relativa calma política, sem a enxurrada de acusações, agressões e exibicionismo que marcaram o funcionamento teatral das CPIs, fornecendo farto material para os interessados em desmoralizar as instituições democráticas, todos aqueles que estiveram envolvidos naquele torvelinho devem fazer uma reflexão e definir um comportamento que dignifique as instituições e seja compatível com a responsabilidade dos que exercem função pública relevante. Essa recomendação se aplica a todos os que, de qualquer forma, podem exercer influência para infundir maior seriedade no trato dos assuntos públicos e no exercício da cidadania. Mas os que integram as instituições de cúpula devem fazer uma avaliação racional de seu desempenho, dialogando com sua própria consciência, libertados das tentações e dos constrangimentos que decorrem da publicidade.

Um dos aspectos mais visíveis dos desvios de comportamento foram os conflitos de autoridade no confronto do Congresso Nacional com o Supremo Tribunal Federal. Para ilustração do mau procedimento, pode ser lembrado que inúmeras vezes, na condução dos trabalhos das CPIs, foram desprezadas as exigências constitucionais e legais. Agora mesmo está em aberto um caso que se enquadra nesse tipo de desvio e que, se não houver respeito à ordem jurídica, vai ensejar a retomada de acusações, desprovidas de fundamento, que porão em choque aquelas duas instituições. Trata-se do caso relativo a processo resultante de acusação feita à então candidata a deputada federal pelo Amapá Janete Capiberibe, de procedimento irregular na campanha eleitoral de 2002. Tendo recebido, no mês de outubro de 2005, comunicação do Supremo Tribunal Federal de que decidira manter a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que declarava a cassação dos registros e diplomas dos envolvidos no processo, a Câmara de Deputados, num ato isolado, sem nem mesmo instaurar o devido processo, declarou a perda do mandato da deputada Janete Capiberibe. Promovendo a desordem jurídica, a Câmara já proclamou uma conclusão, sem ter dado à acusada a possibilidade de exercício do direito de defesa nos termos estabelecidos no proprio Regimento Interno daquele Parlamento.

Ora, referindo-se especificamente a casos como esse, tanto a Constituição, pelo artigo 55, § 3°, quanto o Regimento da Câmara, pelo disposto no artigo 240, asseguram ao acusado o direito de ampla defesa, coerentes, aliás, com a norma fundamental do artigo 5°, inciso LV, da Constituição, segundo o qual a todo acusado é assegurado o direito de ampla defesa. Esses mandamentos legais não foram respeitados pela Câmara de Deputados. Uma vez mais o Legislativo não cumpriu determinações legais e o Supremo Tribunal deverá ser acionado para a proteção do direito ofendido, o que dará ensejo a nova acusação de interferência do Judiciário no Legislativo. Quem não tem formação jurídica e desconhece as regras processuais poderá ser levado a ter uma imagem negativa do Supremo Tribunal e, por extensão, de todo o sistema Judiciário. Mas haverá outras pessoas que, por considerarem o Legislativo mais influenciado pelo jogo político, irão avaliar negativamente o Poder Legislativo, que faz as leis para os outros e age como se tivesse o privilégio de não cumpri-las. É a desordem jurídica implantada por quem deveria estar entre os seus principais defensores.