Título: EUA e Rússia se unem pelo controle
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2006, Internacional, p. A14

Em meio ao caloroso debate sobre as pretensões nucleares do Irã das últimas semanas, o presidente americano, George Bush, lançou, semana passada, mais um projeto polêmico, a criação de uma parceria com a Rússia. O acordo prevê a distribuição de combustível reciclado a países em desenvolvimento e o recolhimento do lixo atômico. Seria uma forma de evitar críticas à forma como as duas potências bloqueiam o acesso à matriz nuclear e, ao mesmo tempo, de controlar os programas energéticos alheios. A proposta, acusam especialistas, além de ineficiente, deixa o mundo ainda menos seguro.

Já está no orçamento de 2007: US$ 250 milhões do dinheiro público dos EUA serão destinados à Global Nuclear Energy Partnership (GNEP, a sigla em inglês para a parceria global de energia nuclear). Segundo o Departamento de Energia dos EUA, a iniciativa ajudaria a não-proliferação de armas ao oferecer atrativos comerciais para que economias emergentes comprassem energia, em vez de desenvolver seu próprio programa atômico. O enriquecimento de urânio para fins pacíficos - ressaltam - ficaria restrito aos fornecedores.

Nas palavras do presidente russo, Vladimir Putin, ''a proposta é formar uma rede de plantas nucleares para o enriquecimento e assegurar o uso equilibrado para todos''.

- Estamos falando de acesso sem discriminação - afirmou o mandatário da Rússia, antiga rival nuclear dos EUA.

No entanto, para o físico Edwin Lyman, da ONG Union of Concerned Scientists (União de Cientistas Preocupados), de Washington, a tática tem outra interpretação:

- A GNEP pretende fazer com que nações pouco desenvolvidas renunciem ao direito de estabelecer seus próprios ciclos energéticos - avalia, ao JB, cético quanto à aceitação do projeto pela comunidade internacional. - Poucos países aceitariam colocar seus programas nucleares em estado permanente de dependência e controle dos EUA.

A tecnologia envolvida é outro ponto de controvérsia. Abandonado há três décadas por Washington, o reprocessamento do urânio foi considerado anti-econômico e ineficaz na contenção da proliferação de armas pelo presidente Jimmy Carter, em 1977.

No atual projeto, os EUA teriam de desenvolver reatores para a reciclagem não só em seu próprio território, como nos países compradores. O que explica a ''parceria'' do ponto de vista comercial:

- Há interesses econômicos envolvidos. Fabricantes de reatores estão sem consumidores e precisam de novos clientes desesperadamente - observa Lyman.

Não é a única voz a destacar o jeito de lobby comercial embrulhado no verniz político

- Muitas indústrias vêem no projeto a oportunidade de serem pagas pelo governo americano para a construção desses reatores - analisa Henry Sokolski, diretor da ONG Centro de Educação para a a Política de Não-proliferação, em Washington, antes de acrescentar: - Os empresários têm toda a razão para crer que a GNEP os faria mais ricos.

O reprocessamento transformaria energia usada por EUA, Rússia e outras nações em bem reutilizável. O lixo reciclado retornaria a solo americano, depois de consumido, para ser enterrado no depósito em Yucca Mountain, a 160 km de Las Vegas.

Além da proliferação de plantas nucleares pelo mundo, no entanto, o processo produziria muito plutônio isolado, substância essencial para a fabricação de armas nucleares, assim como o urânio enriquecido. Um efeito oposto ao desejado por Bush e Putin.

- Tenho duas preocupações - analisa Thomas Cochran, coordenador do programa nuclear do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais. - Uma com a fabricação de armas com material roubado por terroristas, com acesso à matriz nuclear facilitado - explica, antes de apontar a segunda: - Países como Irã ou Coréia do Norte desviando a tecnologia para a produção de armas.

Para Sokolski, se a idéia é promover um senso de segurança paralelo à proposta de desenvolvimento de reatores em uma lista de países, ''o plano está muito equivocado''. Já Anton Khlopkov, vice-diretor do Centro para Estudos Políticos da Rússia, em Moscou, ressalta que, em alguns anos, poderá haver pelos menos 20 países com o know-how básico para fabricar armas.

- Esse projeto é anti-econômico, não confiável, inseguro e ineficaz - sentencia Cochran, com a aquiescência de Lyman:

- A GNEP só deixará o mundo mais perigoso.