Título: ¿Mosca azul picou a direção do PT¿
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2006, País, p. A2

Entrevista com Frei Betto

Aos 61 anos, com 53 livros publicados, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, viveu com intensidade os últimos 45 anos da vida política brasileira. O frade dominicano foi líder estudantil, participou de grupos católicos, ficou preso quatro anos, morou em favelas e organizou movimentos populares. No fim de 2004, frustrado com a política econômica, resolveu desembarcar de uma experiência no Planalto: deixou as funções de assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a Coordenação de Mobilização Social do programa Fome Zero. O livro que está lançando, A Mosca Azul, é uma reflexão não só sobre esse período no governo Lula, mas também sobre a natureza do poder, em Brasília e no mundo. Frei Betto conclui que a mosca picou o núcleo dirigente do PT, deixando para segundo plano os ideais que povoaram o nascedouro do partido. Nem por isso vai negar o voto a Lula, na campanha pela reeleição. Avalia que o presidente e o PT ainda merecem uma chance: ao contrário dos tucanos, pelo menos não criminalizaram os movimentos sociais, justifica. Crítico das alianças com ¿adversários históricos¿ do Partido dos Trabalhadores, Frei Betto argumenta que o PT precisa definir um projeto de país coerente com os princípios partidários. Por não acreditar em mudanças ¿de cima para baixo¿ adverte que exercerá um ¿apoio crítico¿ a Lula num eventual novo governo: ¿ No Planalto aprendi que governo é como o feijão. Só funciona com uma panela de pressão. - A mosca azul picou o PT no poder?

- O grupo dirigente do PT, representado pelo campo majoritário, foi mordido pela mosca azul. O partido se tornou muito mais um instrumento de acesso ao poder, em prejuízo da proposta original, que era organizar a classe trabalhadora. Hoje poderíamos incluir também os desempregados e os excluídos. A picada da mosca azul inoculou no PT o veneno que representa a permuta de um projeto de nação por um projeto de eleição.

- Uma das críticas ao PT se refere ao partido como produto de uma elite operária do ABC. Depois se tornou também um porta-voz dos funcionários púbicos. A grande massa jamais teve condições objetivas para se organizar...

- Não concordo muito com essa análise. O PT é o único partido da história recente do Brasil que logrou uma capilaridade nacional graças aos movimentos populares. Ainda que tenha nascido da cabeça de sindicalistas de ponta, de grandes indústrias, o partido se transformou num conduto político que favoreceu a organização de movimentos populares, comunidades eclesiais de base, sindicatos. É só pegar o exemplo das figuras políticas do PT que vieram do universo da pobreza: Chico Mendes, Marina Silva, Paulo Paim, Vicentinho entre tantos outros. Eles só se transformaram em líderes políticos porque houve um movimento social que serviu de escola e um partido que propiciou a essas pessoas uma consciência cidadã e uma interferência organizada na história do país. Marx aborda muito bem a questão. Só o trabalhador especializado reivindica direitos. O ''pobretariado'', como chamo no livro, tem tão poucos direitos que teme lutar para não perder o pouco que tem.

- Parte dos dirigentes sindicais do PT está aboletada em cargos muito bem pagos e se esqueceu de protestar, inclusive contra a política econômica...

- Essa é uma questão que também analiso no livro. O título é exatamente sobre isso. Sobre aqueles setores que vieram do movimento popular e se deixaram picar pela mosca azul. Efetivamente, a permanência no poder passou a ter maior importância do que o vínculo orgânico com o movimento social.

- Lula, no documentário Entreatos, feito durante a campanha, não estaria evidenciando que também já se deixara picar pela mosca azul?

- Não quero individualizar essa questão. Minha preocupação é maior. Quero entender o pano de fundo dessa impasse, da crise, da desilusão, dessa enorme esperança centrada na eleição do Lula e não correspondida como proposta de esquerda que se construiu ao longo dos últimos 30 anos.

- O empobrecimento do país nas últimas décadas solidificou a aliança perversa entre as camadas mais pobres e os políticos tradicionais que compram votos...

- Está faltando uma das promessas vitais da campanha de 2002 que é a reforma política. Essa lacuna favorece o coronelismo, o voto de cabresto, a corrupção, o caixa dois. Um dos mecanismos para combater a corrupção é o financiamento público das campanhas e a transparência completa de todo o movimento financeiro de partidos e candidatos.

- Desde o início do governo, parlamentares do PT reclamavam que o Planalto não se interessava pelos dossiês mostrando o passado condenável de algumas figuras aquinhoadas pela política de alianças...

- Eu me preocupo em analisar no livro como o poder se comporta quando ele não interage com outro poder, que é a mobilização dos movimentos populares. Quando isso ocorre, tende a se corromper, a se absolutizar. Por isso os governantes temem esses movimentos.

- O senhor acredita na capacidade de regeneração do PT?

- O PT é muito maior do que aquele núcleo de que falo no livro, que buscava mais uma política de resultados do que de princípios, aceitando qualquer tipo de alianças, inclusive com adversários históricos do partido. O PT ainda é o partido mais consistente do país, com 800 mil filiados. Acredito sim na capacidade de recuperação. Por isso é importante ficar claro qual é o Brasil que queremos. Esse é o grande desafio da relação do partido com o seu candidato em 2006. Será uma campanha só pela reeleição ou será também uma campanha para revitalizar um projeto de transformações importantes para o país?

As máfias enfronhadas no aparelho estatal permanecem ativas em todos os governos e são responsáveis pelo desvio de muitos bilhões. Gente beneficiada pela máfia dos vampiros estava no rol de empresas que financiou a campanha de Lula...

- A questão é que o poder público é tradicionalmente refém do grande capital...

- ...Mas tem gente que era pobre, não tinha nada a ver com o grande capital e ficou milionária roubando dinheiro público...

- De fato. Um estudo que precisa ser feito é o da história das grandes fortunas brasileiras. Em que medida o dinheiro público favoreceu esta acumulação. As vezes me perguntam o que acho das ocupações do MST. Depois de ter passado pelo Planalto digo que são absolutamente insignificantes diante das ''ocupações'' da elite brasileira no poder público em geral. Mas é preciso ressaltar que esse governo guarda o mérito de ter realizado ações muito importantes contra os crimes de colarinho branco.

- Qual é, afinal, o projeto de país que o PT deve almejar, após o fracasso do socialismo no Leste europeu?

- A mosca azul transcende ideologias. Não faz distinção entre direita e esquerda. O tema central do livro é como evitar o veneno da mosca azul e injetar valores na estrutura do poder. Não tenho muitas respostas mas tenho muitas perguntas. Por que, no poder, as pessoas tendem a se despersonalizar, preferindo encarnar mais a função que ocupam do que a pessoa que fato são? Por que a identidade sócio-política passa a ter mais importância que a identidade pessoal? Que enfermidade é essa que leva as pessoas a ficarem embevecidas com o poder, algumas até numa tendência de autodivinização por ocuparem ma instância de poder? No livro tento fazer uma etiologia dessa patologia.

- Como fica o regime de Fidel Castro nesse quadro?

- Diante da miséria e da pobreza no continente reconheço méritos na revolução cubana, onde os índices sociais são melhores que a grande média latino-americana. Reconheço também que as limitações e os erros da revolução cubana se devem muito à forma como ela vem sofrendo um criminoso bloqueio do governo dos Estados Unidos, sem que a mídia e a opinião pública internacional fiquem indignadas.

- Isso é suficiente para explicar a falta de democracia interna?

- Em primeiro lugar não se pode comparar um regime socialista com um regime capitalista. Em segundo lugar, os avanços sociais da revolução cubana ainda não foram complementados por um avanço político, do ponto de vista da democracia, porque o regime cubano vive num estado de guerra potencial permanente, que é o bloqueio. Suspenda-se o bloqueio e deixe-se que o povo cubano decida a sua autodeterminação. Esse problema também tem a ver com a origem do socialismo. Todo regime é tributário das suas raízes. No livro analiso como o regime soviético foi tributário do czarismo. Descrevo como fiquei mal impressionado vendo as limousines do Kremlin, que recordavam as carruagens do czar.

- O senhor vai votar em Lula?

- Eu voto nele porque voto num projeto de nação. Estou na expectativa de ver como isso será formulado durante a campanha. Entre os candidatos que se apresentam hoje, fico com aquele que, no mínimo, não tem criminalizado os movimentos populares nem tem procurado cooptá-los.

- E se ele repetir as alianças?

- Meu apoio é crítico. Tem em vista o fortalecimento dos movimentos populares. Não acredito em mudanças de cima para baixo, mas de baixo para cima. Aprendi no Planalto que governo é como feijão: só funciona com uma panela de pressão. Para se perseguir esse objetivo é melhor Lula do que qualquer dos outros candidatos que estão aparecendo. A pressão sob o governo Lula é muito mais viável do que sob um governo tucano, que tratou os movimentos populares como caso de polícia.