Título: Quando a vida não tem remédio
Autor: Carolina Benevides e Florença Mazza
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2006, Rio, p. A27

Desesperada com a falta de medicamentos fundamentais para a vida de seus filhos, de 3 e 8 anos, a funcionária pública Alessandra Barcellos, 31 anos, passou a dar para os meninos, portadores de fibrose cística (ou mucoviscidose), remédios com data vencida. A médica das crianças desaconselhou a estratégia: as conseqüências da medicação vencida poderiam ser piores do que as de sua ausência - desnutrição e pneumonia que, em casos graves, podem levar à morte em seis meses. O drama de Alessandra é comum aos cerca de 180 pacientes cadastrados na Associação Carioca de Mulcoviscidose (Acam). Desde novembro, os remédios e as enzimas pancreáticas fundamentais aos portadores da doença - incluídos na lista de medicamentos excepcionais do Ministério da Saúde - estão em falta nos dois pólos de distribuição da Secretaria Estadual de Saúde.

A denúncia é feita pela Acam e pela Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (Abram). O uso dos medicamentos - o Dornase Alfa (para dissolver o muco) e as enzimas pancreáticas - é a única maneira de manter vivos os portadores de fibrose cística - uma doença genética, sem cura, causada pela deficiência de cloro no organismo.

Especialista em genética e membro do Projeto Genoma Humano, Salmo Raskin explica que a doença atinge os órgãos que produzem secreções, principalmente o pulmão e o pâncreas. Sua estimativa é de que um em cada 10 mil nascidos vivos tenha fibrose cística no Rio. No Brasil, diz Salmo, a sobrevida média de um paciente em tratamento é de 20 anos. Sem os medicamentos, porém, a pessoa pode morrer de insuficiência respiratória, já que a cada pneumonia as lesões são irreversíveis.

- Vamos ter um infanticídio no Rio, pois essas crianças não têm como sobreviver sem a medicação. Desde novembro, os laboratórios se recusam a vender para o Estado do Rio por falta de pagamento - declara Sérgio Sampaio, presidente da Abram.

Ele explica que, por serem considerados medicamentos excepcionais, é obrigação da Secretaria Estadual de Saúde distribui-los aos pacientes. A verba gasta com os tratamentos - só para remédios, um portador precisa de R$ 6 mil por mês - é ressarcida pelo Ministério da Saúde.

Alessandra sabe que a realidade não é assim. Os medicamentos começaram a faltar no Instituto Fernandes Figueira, onde seu filho faz o tratamento, e, sem ter como comprar os remédios - sua renda mensal é de R$ 4 mil -, vai ter de interná-lo este mês:

- Ele chora quando sabe que será internado, diz que os amigos vão perguntar porque sumiu.

O psicólogo Abraão Roizenblit, 46 anos, tem duas filhas com a doença. Ele ainda tem estoque para mais um mês, ganho em doações, mas já se preocupa:

- Quando pára o remédio, de imediato surgem os males da doença: elas ficam desnutridas e mais suscetíveis a pneumonias.

Segundo Viviane Frankenthal, diretora da Acam, estão em falta atualmente no Rio o Dornase Alfa, todas as enzimas, a Tobramicina inalável (antibiótico) e o Adeks (vitamina), entre outros medicamentos.

- Já apelamos para a Justiça, para os políticos, não sabemos mais o que fazer - reclama Viviane, que estima em mais de mil os pacientes no Rio.

Segundo o Ministério da Saúde, não houve atraso no repasse para a compra de medicamentos excepcionais em 2005 nem este ano. Dia 3, o ministério repassou R$ 4, 9 milhões para a Secretaria Estadual de Saúde. A assessoria da pasta informa que as enzimas foram entregues no Fernandes Figueira dia 9. O Dornase Alfa foi comprado e a secretaria aguarda a entrega. Viviane confirma que foi feita uma compra emergencial de enzima digestiva e de Pulmozyme, mas adianta:

- Daqui a um mês não tem mais nada e a luta começa toda de novo. É um desgaste enorme.