Título: A mosca azul de Frei Betto
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 14/02/2006, Outras Opiniões, p. A11

Frei Betto já escreveu mais de cinqüenta livros. O mais recente é A mosca azul, título inspirado em Machado de Assis, extraído de um poema narrativo de Ocidentais, que aparece entre Suave Mari Magno, este narrando a agonia de um cão envenenado, morto na rua, ''ao sol de verão'', enquanto ''nenhum, nenhum curioso/ passava, sem se deter,/ silencioso,/ junto ao cão que ia morrer,/ como se lhe desse gozo ver padecer''. Segue Antônio José, homenagem machadiana ao escritor brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, queimado em companhia da mulher e da filha em Lisboa, em 1739, no esplendor de seus 34, acusado de judaísmo: ''Antônio, a sapiência da Escritura/ clama que há para a humana criatura/ tempo de rir e tempo de chorar,/ como há um sol no ocaso, e outro na aurora''. O tricentenário de seu nascimento, ano passado, foi lembrado com um livro da Editora da USP, tendo como organizadores Alberto Dines e Victor Eleutério. El prodígio de Amarante/O prodígio de Amarante, peça até então anônima, foi escrita num portunhol literário, como observa Moacir Amâncio, escritor e professor da USP, pois o dramaturgo carioca, perseguido, talvez tivesse utilizado o espanhol para se proteger, como outros utilizam metáforas, às vezes tão rebuscadas que só iniciados em rituais literários as entendem.

Este, porém, não é o caso de Frei Betto. Dono de um texto vigoroso, conciso, demolidor, este frade da ordem dos dominicanos nasceu escritor e depois se tornou frade. Ousado, polêmico, às vezes controverso, como todo intelectual que se aventura a expressar as idéias sem medo, sempre é entendido, o que rende endossos e discordâncias. Este colunista tem um contencioso a mais com o ex-assessor do presidente Lula: somos, por assim dizer, concubinos de Santa Teresa D'Ávila, paixão que destilei num romance e numa peça de teatro. Frei Betto morre de amores também por Sóror Juana Inês de la Cruz, homenageada em seu romance O Dia de Ângelo, um dos pontos altos de sua ficção, ao lado de Entre todos os homens, este um romance de qualidade superior ao Evangelho de Jesus Cristo, de José Saramago, sobretudo porque escrito por quem conhece melhor o protagonista.

A mosca azul será melhor entendido se lido neste contexto. Não se espere dele revelações bombásticas de bastidores. Mas também não se espere disfarce algum. Frei Betto critica duramente o PT, tomando a defesa do MST e de outros movimentos populares, esquecidos pelos petistas no governo, a quem acusa de terem perdido ''uma visão estratégica voltada à mudança social e ao protagonismo do povo organizado''.

Fala do velho PT que perdeu para o novo PT: ''lembro-me de Marisa, mulher de Lula, (...), gravando milhares de camisetas no quintal de sua casa''. E reflete: ''Admito, é bem melhor ter dinheiro em caixa e não precisar submeter militantes a jornadas heróicas noite adentro. Mas a que preço?''. Todos sabem o preço. A imprensa, à luz de fatos, mostrou ao Brasil inteiro o preço pago, no caso não uma metáfora, mas dinheiro vivo posto em cuecas, em malas, em contas no exterior.

Mas Frei Betto diz que ''a luta sofrida pelo PT no bojo da corrupção denunciada pelo então deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) merece ser encarada num contexto mais amplo''. (...) ''O PT adequou-se de tal modo ao jogo burguês, que se aproximou de adversários históricos numa política de alianças que, se de um lado possibilitou a eleição de Lula, de outro inviabilizou, na atual conjuntura, a implementação dos compromissos históricos do partido''. (...) ''O frágil apoio parlamentar abriu caminho aos operadores da política de resultados, que lançaram mão de práticas que, trazidas à luz, macularam gravemente o caráter ético do partido''.

O livro tem seu ponto alto no modo de narrar, sobretudo quando prevalece o tom confessional: ''de repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste (...). Não era aquela a travessia mapeada por minha fé''. Mas guarda a certeza de que a viagem não foi em vão. Abandonou o barco de Lula e, como seu conterrâneo Guimarães Rosa, resume: ''nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo''.

O poleá destruiu a mosca azul sem entendê-la. Frei Betto decifra o poder do modo como passou a ser exercido após a ascensão de Lula, marcando seu desacordo fatal diante da adesão às velhas práticas. O povo brasileiro é o cão que morre abandonado, diante de olhos que parecem ter gozo em seu padecimento, pois tal situação rende cestas básicas, bolsa-família e, claro, muitos votos, disputados avidamente por quem promete mudar a situação, mas chegando ao poder, esquece ou perde o rumo anunciado com a ajuda de publicitários de renome, os primeiros a saber do engano, pois ajudaram a construí-lo.

Aos companheiros de jornada, integrantes ou não do partido, o PT no governo ofereceu o cálice mais amargo: a perseguição, a expulsão, como fez com Heloísa Helena, a senadora mais votada da República em todos os tempos, e com a deputada Luciana Genro, filha de Tarso Genro, então ministro da Educação quando sacrificado no acrisolamento abortado do partido. Para ser fiel às origens, teria sido necessário expulsar aqueles que as expulsaram, pois atrapalhavam acordos espúrios.