Título: Denúncias cruzadas
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 15/02/2006, Opinião, p. A7

Enquanto não for extirpada a praga da reeleição ou revistas as normas de moralidade discutível que conferem ao dono da máquina oficial os privilégios desfrutados à larga pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e, agora, pelo candidato em campanha, presidente Lula, as pesquisas continuarão a registrar o folgado favoritismo dos beneficiados na fita de largada. Continuaremos a assistir ao espetáculo da troca de acusações, de denúncias e agressões entre o ex, derrotado na sucessão, e o candidato a bisar os quatro anos de folia administrativa. O flagrante do momento não pode ser mais didático para se conferir o quadro insustentável e de correção complicada, e seu efeito corrosivo na desmoralização institucional dos três poderes, envolvidos, em graus diversos, no festival de espertezas e de golpes por baixo da mesa.

A súbita onda otimista que aquece a campanha de Lula, molhando o lixo dos escândalos do caixa 2 e do mensalão, era previsível com a segurança matemática da soma de dois e dois. Tal e qual pintou a bordou o FHC, padrasto da reeleição, quando apostou todas as fichas do cacife oficial para espichar o mandato, Lula, aluno aplicado, supera o mestre na ordenha das regalias privativas do exercício do cargo executivo.

E que são imensas e inesgotáveis, como que se multiplicam nos milagres de período eleitoral. Lula iniciou a virada - que agora celebra na confraternização do jantar que juntou os 26 anos da fundação do PT, recém saído da UTI, com a arrecadação de cerca de R$ 1 milhão com a venda de convites de valores entre R$ 5 mil a modestos R$ 200 - murcho e esquivo, na rabada das pesquisas, com índices desqualificantes de rejeição. E sob o fogo das denúncias das CPIs dos Correios e dos Bingos, noves fora a do mensalão de pífio desempenho.

Se sempre foi candidato a mais quatro anos de residência no Palácio Alvorada e fins de semanas na Granja do Torto, purgou os momentos de ceticismo na amargura da decepção. A saída traumática de José Dirceu da chefia da Casa Civil desmantelou o esquema político. O jeito original de delegar as responsabilidades da enfadonha rotina burocrática aos 31 ministros e secretários do obeso napeiro espalhado pela Esplanada dos Ministérios em gabinetes separados por tabiques, expôs os erros da improvisação e das deficiências do chefe que não passou pelo aprendizado de cargos municipais e estaduais. E transitou pelo Congresso, como gato em braseiro, no único mandato de deputado federal, com desempenho medíocre.

Esperteza e malícia nunca faltaram ao torneiro mecânico de ascensão fulminante. Lula encontrou a cancela de saída e por ela escapuliu, lançando-se à campanha com o disfarce transparente de negar sempre, com o rosto congelado, que caçava os votos espalhados pela decepção. Usa e abusa da máquina com a mesma sem-cerimônia com que viaja no seu milionário avião privativo.

A superexposição em meses de campanha em tempo integral, com palanque, platéia, foguetório, discursos, inaugurações de qualquer coisa ou de promessas - como ensinou e provou o Duda Mendonça - apaga as manchas de delúbios e rende pontos nas pesquisas. A colheita dos 10% de vantagem sobre o prefeito de São Paulo, José Serra, comprova o acerto da tática.

O mais é conseqüência. Dos embaraços da oposição sem candidato natural e sob a ameaça da dispersão dos aliados à denúncia contra FHC, pela declaração de que ''a ética do PT é roubar''. Claro, vai dar em nada. A reeleição, com as regras frouxas da permissividade que dispensa a desincompatibilização, está nas convulsões de moribunda. Ou será extinta sem deixar saudades ou submetida à plástica radical que disfarce os defeitos de nascença.

Teremos que suportá-la em mais uma eleição. Com a mesma tolerância com que assistimos à peteca de denúncias entre Lula versus FHC, PT contra tucanos e pefelistas, no gramado seco da hipocrisia. Todos cobertos de razões e com os fundilhos rasgados pela contradição: Lula acusa o seu antecessor de ter inaugurado obras, viajado, discursado e espalhado promessas em campanha. Recebe o troco na mesma moeda.

O Judiciário está sob a vexaminosa rebelião dos tribunais estaduais pela manutenção do nepotismo. E o governo não acabou de tapar os buracos nas rodovias e é exposto ao vexame das reclamações: os remendos de piche e areia desfazem-se com a chuvarada como açúcar na xícara do cafezinho. Com as vidraças estilhaçadas, quem pode atirar pedra na janela do vizinho?