Título: A hora da decisão
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 15/02/2006, Opinião, p. A6

A missão de estabilização no Haiti, liderada pelas tropas brasileiras, vive seu momento mais crítico. Cabe aos soldados garantir a tênue barreira que separa a tensão da explosão social, missão difícil e que acabou complicada por dificuldades de condução do processo eleitoral por parte da equipe das Nações Unidas encarregada de reestruturar o país. Seja qual for o resultado que emergirá das urnas, haverá muita contestação. E duvidar da legitimidade, como se sabe, é o primeiro passo para transformar em pó o alicerce de democracia criado com o voto.

Os funcionários civis da ONU adiaram o pleito por três vezes, entre outras coisas, em decorrência da incapacidade de alistar os eleitores e organizar as seções de votação. No país mais miserável das Américas, é compreensível que as pessoas tenham trocado o dever cívico pela busca por comida. Nessa demora está a raiz das barricadas com pneus em chamas que dividiram a capital Porto Príncipe. E está também a inspiração para os líderes do protesto que culminou com a invasão do hotel onde funciona a comissão eleitoral.

Grupos políticos de ambos os lados se valeram da fragilidade do processo para questioná-lo. Enquanto era só favorito, René Preval já falava como eleito. Seus seguidores saíram às ruas assim que as urnas se fecharam para festejar uma vitória que o avanço da contagem poderia retardar ou impedir. Confrontados com a possibilidade de um segundo turno, rejeitaram as regras do jogo que até então aceitavam e atearam fogo às barricadas. Quase ao mesmo tempo, a lisura da condução eleitoral sofreria questionamentos por parte de integrantes da própria comissão organizadora. A suspeição ardeu como gasolina.

Foram dois duros golpes na expectativa de uma solução suficiente para reinserir o país na comunidade internacional. Atitudes criminosas diante da responsabilidade de todos os candidatos para com a esperança de um povo tão descrente da democracia. No meio da confusão, os capacetes-azuis se esforçam em evitar que a decretação de um resultado diferente do sonhado pelos favoritos transforme, de novo, o Haiti em um caldeirão. Para o Brasil, é hora de mostrar que liderança não se coaduna com a manipulação.