Título: Em busca do tempo perdido
Autor: Pedro do Coutto
Fonte: Jornal do Brasil, 22/11/2004, O país, p. A3

O Diretório Nacional do PT, reunido em São Paulo, decidiu partir em busca do tempo perdido, como no título eterno de Marcel Proust. Um tempo que a legenda deixou escapar nestes dois anos que vão da vitória do candidato nas urnas à derrota do presidente na administração federal. Nenhuma dúvida quanto a esta dualidade, sublinhada no pleito municipal deste ano, principalmente com os desastres de Marta Suplicy, em São Paulo; Jorge Bittar, no Rio e Raul Pont em Porto Alegre. Como pedir ao eleitorado que vota no PT se o governo congela salários? A partir de sexta-feira, nos cinemas, Entreatos, de João Moreira Salles, passa a constituir documento histórico fundamental: Luiz Inácio Lula da Silva, no Planalto, está em oposição ao candidato Lula, consagrado nas ruas há dois anos. Por que?

Simplesmente porque, no executivo, Luiz Inácio Lula da Silva não conseguiu estabelecer um projeto político definido, como fez, por exemplo, Juscelino Kubitschek nos anos dourados de 56 a 61 que tanto inspiraram Gilberto Braga. Lula ¿ aí seu principal equívoco ¿ interpretou o uso da caneta como capaz de levá-lo a obter a indispensável maioria parlamentar no Congresso. A caneta, claro, é essencial, mas não produz magia. Ela, por si só, não garante o desenvolvimento econômico e o progresso social. Estes dois fatores não dependem apenas de nomear-se políticos ou representantes de vários setores da sociedade. E o avanço econômico-social é o termômetro do destino dos governos e do próprio jogo de poder. Marketing não resolve a ação concreta, muito menos é capaz de substituí-la. Isso de um lado.

Do outro, o poder não se divide. Será sempre um gesto solitário de quem o ocupa. Numa entrevista a mim, em 63, para o Correio da Manhã, JK, candidato à sucessão de 65 ¿ sucessão que não houve ¿ criticava objetivamente o rumo do governo Goulart, que, psicologicamente amedrontado, tentava transferir responsabilidades intransferíveis. Além disso, era atingido pela cisão aberta por Leonel Brizola, a quem ¿ acho eu ¿ o sistema militar que governou arbitrariamente de 64 a 85 deve erguer uma estátua em praça pública. Não fosse ele, Jango não teria caído em 64.

Tudo isso prova, mais uma vez, que o poder será sempre o exercício solitário de um único ser humano. A política é, ao mesmo tempo, a luta por esse poder, a arte do possível, mas sobretudo o único instrumento possível de realização coletiva. Há, hoje, no horizonte de Brasília uma linha desfocada dividindo as aspirações públicas legítimas dos objetivos particulares, inclusive os procedentes. Os juros sobem; os salários descem na medida em que perdem para a inflação.

Quantas substituições já foram feitas na equipe governamental em apenas dois anos? São a melhor prova da ausência de um projeto político claro e consequente. Em São Paulo, agora, o Diretório Nacional discute aumentar a participação do PMDB no ministério. Não é por aí: apoios são acessórios, não substituem o essencial. Indispensável é que o presidente reencontre o candidato. Sobretudo porque ele não liderou a campanha de 2002: exprimiu o repúdio ao desastre chamado FHC, que assumiu uma dívida interna de R$ 62 bilhões ¿ está nos relatórios do Banco Central ¿ e a multiplicou 11 vezes em oito anos. Congelou salários, privatizou empresas com recursos do BNDES e dos fundos de pensão. O processo deixou um rombo superior a 10 bilhões de dólares, pelo menos. A rejeição a Fernando Henrique Cardoso era tão grande, que Lula saiu na frente, mas Roseana Sarney encostou. Jorge Murad promoveu o desabamento de Roseana. Surgiu Ciro Gomes. Encostou. Explodiu a si mesmo. Lula retomou a frente e disparou. Jamais Serra apareceu com possibilidade de vitória.

Agora, claro, o presidente Lula preocupa-se com a reeleição em 2006, não mais certa como parecia. Aloizio Mercadante, como é natural, volta-se para a sucessão de Alkmim em São Paulo. O PT, dividido, lança-se na busca do tempo perdido. Para isso, o governo tem que mudar de objetivos, a começar pelo fortalecimento dos salários e a retomada vital do nível de emprego. Sem o povo não se governa. Até porque o povo pode mudar de governo, mas o governo não pode mudar de povo.