Título: A gênese do lulismo
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 16/02/2006, Outras Opiniões, p. A15

Na história do movimento operário brasileiro, não foram muitos os exemplos de lideranças que assumiram projeção política nacional. Nosso capitalismo, muito colonial e quase prussiano, servil e bastante subordinado, sempre tolheu, barrou e reprimiu as melhores lideranças oriundas do mundo do trabalho. Lula pode, neste sentido, ser considerado um caso excepcional. Migrante dos rincões do Nordeste brasileiro em busca de trabalho no cinturão operário que se desenvolvia no ABC paulista, sob impulsão do juscelinismo e da nascente indústria automobilística, quase por acaso tornou-se dirigente sindical. Seu irmão, que tinha a alcunha de Frei Chico, militante operário vinculado ao PCB, impossibilitado pela ditadura militar de fazer parte da chapa do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, abriu espaço para o irmão mais novo, que era jejuno em militância sindical e neófito em política. E Lula foi, então, quase por contingência, para a direção do Sindicato dos metalúrgicos com nenhum outro propósito senão o de ''melhorar de vida''.

Em pouco tempo, entretanto, a figura de Lula despontou. Diferente de Paulo Vidal, espécie de neopelego que à época dirigia o Sindicato, Lula mostrou sensibilidade incomum. Sua vivência operária, no chão da fábrica, lhe deu impulsão para melhor representar os interesses operários que então, em meados dos anos 70, ainda sob a truculência da ditadura militar, não encontravam canais de real representação.

Foi assim que, em poucos anos, tornou-se reconhecido pela categoria metalúrgica do ABC paulista, o que o levou, posteriormente, à Presidência do Sindicato. Sua espontaneidade operária suplantava em muito suas limitações. Falava o que sentiam os trabalhadores, dava-lhes voz, numa fase ditatorial onde prevalecia a mudez.

Vale essa lembrança: quando Delfim Neto, o então mago da economia política da ditadura (e hoje aliado de Lula e seu governo) surrupiou 34,1% do aumento salarial dos trabalhadores, nos idos de 1973, Lula teve a coragem de denunciar duramente. Daí nasceu a sua máxima: lutar contra o ''arrocho salarial'', expressão que ganhou corpo e cara na fala de Lula, o metalúrgico, que denunciava a realidade marcada por uma política econômica alvissareira para os capitais e matreira para os trabalhadores.

Lula tornou-se a mais viva, real e autêntica expressão daquilo que, então, muitos de nós, estudiosos e simpatizantes do nascente movimento, denominamos como ''novo sindicalismo''. Liderou greves majestosas, como em 1978/80, combateu o peleguismo sindical e descontentou o sindicalismo político tradicional, que na época, ainda sob forte repressão, atrelava a ação operária aos interesses de uma pretensa (e de fato inexistente, como nos mostrou anteriormente o golpe de 1964) ''burguesia nacional progressista''.

Descontente com essa dupla alternativa, dada pelo peleguismo sindical e pelo politicismo anti-operário, Lula participou ativamente da criação do PT, em 1980, e da CUT, em 1983, ambos experimentos que, em sua origem, propugnavam pela autonomia sindical e política dos trabalhadores.

Se na CUT Lula era voz central, no PT desde logo ele se tornou a liderança principal. Respaldado por sua história recente, Lula, como líder partidário foi, pouco a pouco, se descolando de sua base operária original, migrando, numa transição que durou mais de uma década, para finalmente converter-se num tipo de político profissional que se lisonjeava com sua ''nova condição'' de classe média.

O seu depoimento, no filme Entreatos, de João Moreira Salles, é cristalino: Lula fez de tudo para convencer o pesquisador do IBGE de que era um homem de ''classe média''. Seu desprezo pelo ''macacão'', também estampado no filme, não era próprio de quem se orgulhava de sua origem e passado, mas de alguém que sonhava em apagá-lo, em transformar-se no exemplo cabal de self made man.

E, ao realizá-lo, exprimia algo que foi sistematicamente se consolidando: por detrás de sua aparente simplicidade, aflorava alguém que prezava cada vez mais o culto à personalidade, cultuava a condição líder e mesmo tertius, dentro do PT, o que acabou por fazer proliferar, dentro e fora do partido, o fenômeno do lulismo.

Se durante a década de 1980, das mais ricas da história das lutas sociais no Brasil, Lula soube se manter colado aos interesses majoritários do mundo do trabalho, na década seguinte, marcada pela desertificação neoliberal, Lula consolidou sua maior mutação. Que lhe custou a vértebra. E, sem ela, restou o lulismo. Estava concluída sua fase primeva. Gestava-se, então, o novo ''messias'' da política, dentro e fora do PT. Escolhido para desafiar o neoliberalismo, tornou-se o seu mais competente paladino.