Título: Democracia jogada no lixo
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 16/02/2006, Internacional, p. A7

Imagens de milhares de cédulas de votação queimadas transformaram o Haiti num barril de pólvora e minaram o respeito popular às eleições. Eleitores do líder René Préval, que já havia advertido para ''maciças fraudes'' no pleito do dia 7, fizeram ontem uma enorme passeata pelo centro de Porto Príncipe, aos gritos de ''olhem o que fizeram com as nossas escolhas''. O pavio para mais protestos foi aceso na terça-feira à noite, quando que a rede de televisão Telmax exibiu cenas do fogo que consumiu votos, principalmente para Préval.

As cédulas, cuja segurança pelo transporte era responsabilidade das tropas da ONU, foram encontradas num depósito de lixo no bairro de Truitier, em Porto Príncipe. A maioria dos papéis preservados estava em branco, mas era possível ver a marca de tinta sob a foto de Préval em diversos outros. Testemunhas contaram ter visto urnas sendo jogadas no lixo no mesmo dia das eleições.

- As pessoas estão furiosas, prontas para atear fogo no país inteiro - afirmou Michel Brunache, chefe de equipe do governo interino de Boniface Alexandre.

O porta-voz da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), David Wimhurst, admitiu o extravio de muitas urnas em pelo menos nove centros de votação de ''diferentes partes do país''. A justificativa é de que violentos distúrbios nestes locais impediram que a Minustah garantisse a segurança.

A tarefa da missão era selar os repositórios de cédulas e colocá-los em contêineres, que seriam vigiados pelos capacetes-azuis. Não foi revelado sob responsabilidade de qual contingente da Minustah estavam as urnas extraviadas. Mas o coronel Luiz Santiago acredita que o erro não tenha sido cometido pelos brasileiros.

- Estávamos cuidando dos centros de votação em Porto Príncipe. Não tivemos reclamações daqui, até agora - contou ao JB.

A história ganhou outra versão à tarde, quando a empresa privada Boucar Pest Control revelou ter jogado cédulas no lixo em cumprimento de um contrato de serviços de limpeza com a própria Minustah. A companhia garante ter levado caixas com votos para o lixão:

''Nosso contrato é de pegar, levar e descarregar lixo da missão em Truitier'', diz o comunicado, sem especificar se os despejos eram de uma das bases militares ou da sede civil.

Wimhurst avalia que tenham sido queimados 3.500 votos, de um universo de 3,5 milhões de eleitores. Os mais otimistas podem pensar que a cifra de 1% dos sufrágios é desprezível para colocar as eleições em risco. Mas esta é a praticamente a diferença que força Préval a enfrentar o segundo turno. Com 90,02% dos votos apurados - e a contagem paralisada até que as denúncias de fraude sejam investigadas -, o candidato do Partido Esperança tem 48,76% de apoio, mais do que o quádruplo do segundo colocado, Leslie Manigat (11,83%).

- Vamos pedir explicações à Minustah. Isso pode desacreditar as eleições - criticou o presidente do Conselho Eleitoral Provisório (CEP), Max Mathurin.

O secretário-geral do órgão, Rosemond Pradel, disse ainda que ''algumas atas de votação'' nunca chegaram ao centro de contagem oficial de votos, no Hotel Montana, na capital:

- Isso é absolutamente inaceitável.

Embora os haitianos estejam pessimistas quanto à validade do pleito, para o cientista político Candido Mendes o que aconteceu foi um ''incidente'' que não mina o processo como um todo. Tampouco deprecia a posição do Brasil, como comandante da missão da ONU, diante da comunidade internacional.

- O Haiti é um país ao qual falta tradição e manutenção da cultura democrática. Só o fato de se ter conseguido organizar eleições já é um resultado positivo - avalia.

De acordo com o reitor, as cédulas no lixo não comprovam a ''fraude maciça'' da qual Préval falava na terça-feira:

- Incidentes eleitorais como este acontecem em todos os regimes, especialmente em países em situação sensível.