Título: A falta que ele faz
Autor: Samantha Lima e Julia Ribeiro
Fonte: Jornal do Brasil, 22/11/2004, Economia, p. A17

Com a morte de Celso Furtado, o país perdeu um de seus mais notáveis filhos. E eu perdi um querido amigo. Que ganhei quando ele casou com Rosa, uma das minhas ¿irmãs¿ de vida, amiga de mais de 40 anos, desde os tempos do Colégio Santa Úrsula. Foi, portanto, com o coração pesado de tristeza que participei, neste fim de semana, das últimas homenagens a Celso. Ali, ao lado de Rosa, fui acompanhando aquele triste cortejo, ao mesmo tempo em que, com o olho de repórter (deformação profissional, é claro), analisava o que se passava em volta de nós.

De cara, senti falta do ex-presidente Fernando Henrique. Como vi que ele deu entrevista à TV, sábado à noite, em São Paulo, estava certa que pegaria uma ponte aérea para as exéquias. Ledo engano. Fiquei chocada: FHC foi íntimo de Celso, vizinho em Paris nos tempos de exílio. Foram sempre tão amigos que o economista foi um dos convidados para a festa de comemoração de sua primeira eleição para a Presidência ¿ com a presença restrita ao círculo da intimidade, na casa de Fernando Gasparian, no Leblon. Estranha ausência.

Mas ele não foi o único: o ex-presidente José Sarney, a quem Celso emprestou seu brilhantismo como ministro da Cultura, também não apareceu. E Lula, que confirmara presença, lá não esteve. Comentava-se que ele não teria vindo porque seria complicado montar um esquema de segurança, assim, de uma hora para outra. Muito estranho.

No portão do cemitério, aos pés do carro do Corpo de Bombeiros, o casal Favre ¿ Martha Suplicy, uma velha e querida amiga dos Furtado; poucos metros atrás deles, muito poucos mesmo, o senador Eduardo Suplicy. Os três foram os mais solicitados para entrevistas, como sempre. No trajeto para o mausoléu dos imortais, o trio se separou. Martha, impaciente, não agüentou ficar atrás do ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, que, num verdadeiro tour de force, andou todo o cemitério e subiu muitos degraus apoiado numa muleta: passou a frente da viúva e cortou o caminho. Ligeira, a prefeita chegou na frente de todo mundo. Inclusive da família.

Rosa Furtado, aflita com o evidente esforço físico de Lessa, tentou fazê-lo desistir de acompanhar o enterro. Resposta dele: ¿Foi para acompanhá-lo até o final que vim até aqui. Não se preocupe comigo¿. Questão de lealdade. E de afeto. Um anônimo senhor, baixinho e nordestino, carrega uma bandeira do Brasil e um gravador cassete daqueles de antanho, que ninguém vê mais. Rosa me disse que ele se apresentara como o editor da Voz do Sertão. Voz que ouvi, momentos depois, quando esperava que minha amiga saísse do mausoléu dos imortais, gravando mensagem para seus ouvintes sobre o grande brasileiro, o grande sertanejo, que o Brasil acabara de perder.

Ali postado, bandeira pousada sobre uma das tumbas, era uma figura bizarra. A cara do Brasil que Celso Furtado tanto amou.