Título: Casuísmo resolve crise
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 17/02/2006, Internacional, p. A14

O Haiti já tem novo presidente: René Préval, um ex-aliado do dirigente deposto Jean-Bertrand Aristide, foi declarado ontem vencedor em eleições presidenciais marcadas por fraudes e por um acordo, patrocinado pelo Brasil, onde o casuísmo político encerrou o processo de votação. O segundo turno obrigatório em caso de o candidato mais votado não passar dos 50% dos votos, que despontava como fato, foi esquecido sob a justificativa de evitar uma explosão popular. Préval, que viu sua vantagem se reduzir à medida em que a contagem avançava, tem seu reduto eleitoral nas favelas que cercam Porto Príncipe. Na quarta-feira, tinha caído para 49%, contra 11% do principal rival, Leslie Manigat.

Adversário da mesma elite que ajudou a tirar Jean Bertrand Aristide do poder, há dois anos, Préval denunciou um complô para impedir sua vitória já no primeiro turno. A descoberta de urnas e cédulas marcadas num lixão da capital reforçou a suspeita e funcionou como gatilho para grandes manifestações de repúdio que inviabilizaram a continuidade do processo. A tensão nas ruas forçou a Comissão Eleitoral (CEP) a aceitar a proposta brasileira, na qual 85 mil votos brancos, até então não computados, seriam considerados válidos e rateados entre os candidatos. A manobra, defendida pelo Assessor Especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, deixou o favorito com 51% dos votos.

- Vencemos. Agora, vamos lutar pelo Parlamento - comemorou Préval, antecipando a grande festa que seus partidários fariam nas ruas da cidade.

Mais tarde, o presidente eleito conversou com o chanceler brasileiro, Celso Amorim, e manifestou a ele sua intenção de visitar Brasília antes da posse, prevista para 29 de março.

Além do Brasil, os Estados Unidos deram boas-vindas à volta do ex-presidente ao poder - o único que já conseguiu terminar um mandato democrático no país. José Miguel Insulza, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, classificou o desfecho da crise como ''um passo significativo na construção do futuro do Haiti na democracia''. O único que não tinha motivo nenhum para comemorar era Manigat.

- Isso foi um golpe de Estado através das urnas - afirmou o principal derrotado. - Eu tinha direito de ir para o segundo turno, estava escrito nas leis.

O cientista político haitiano Jean Voltaire concorda que Manigat foi lesado no modo como o processo eleitoral terminou:

- Não foi uma saída democrática. As autoridades internacionais e haitianas não seguiram as leis. Préval não ganhou no primeiro turno. Deveria haver um segundo - disse ao JB.

Para Voltaire, em vez de colocar o país no trilho da democracia, os atores da missão de estabilização da ONU (Minustah) empurraram o Haiti para a via oposta:

- A comunidade internacional, incluindo os brasileiros, está criando um tumulto político no Haiti. O Brasil é um país em desenvolvimento, inclusive politicamente, não tem experiência política suficiente como líder - criticou. - Foi por isso que cometeu o erro de ser o primeiro a pedir ao CEP que declarasse Préval presidente. Isso é triste.