Título: Biscoitos e catedrais
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2006, Idéias & Livros, p. 1

Certa vez, estando em Londres e desejando localizar uma rua, Guimarães Rosa resolveu pedir uma informação. Um velho gari, com o carrinho de limpeza, o atendeu polidamente e pôs-se a dar explicações. Mas o seu inglês tinha uma pronúncia ininteligível, e Rosa ficou na mesma. Agradeceu e foi seguindo ¿ na direção errada. Logo o gari veio em seu encalço, para preveni-lo de que o caminho não era aquele. O escritor não conseguia entender o que ele dizia e teve medo de tê-lo correndo atrás de si a vida inteira. Quando o sujeito menos esperava, saiu em disparada e, vitorioso, dobrou a primeira esquina. Histórias que, como esta contada por Fernando Sabino, dão notícia das manias e cismas de Guimarães Rosa são mato entre seus admiradores e os poucos contemporâneos ainda vivos. Há quem lembre ¿ o poeta Felipe Fortuna é um deles ¿ sua corajosa atuação como cônsul em Hamburgo, entre 1938 e 1942, quando, sob o tacão da Alemanha nazista, ajudou judeus perseguidos ao emitir mais vistos que a cota estabelecida em lei.

O fato é que, passados 50 anos da publicação do seu mais importante livro, Grande sertão: veredas ¿ razão deste caderno Idéias especial ¿, ainda não temos uma biografia que ilumine a vida daquele que é considerado o maior escritor brasileiro do século 20. Que há mil coisas escondidas, as quais precisam ser contadas, é exemplo as reportagens de Vivian Rangel com os moradores de Cordisburgo, cidade natal do escritor, e de Paula Barcellos com o diplomata Roberto Assunção. Aos 90 anos, ele guarda preciosidades (cartas, inúmeras cartas reveladoras, além de anotações críticas do próprio Rosa feitas em exemplares da sua obra) e mais casos, pitorescos ou não, envolvendo o amigo com quem conviveu desde os anos 40 até a sua morte em 1967, três dias depois de ter tomado posse na cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras.

Sabe-se que Guimarães Rosa era arredio no que dizia respeito a sua vida particular e, antes de a prática virar moda entre seus pares, não gostava de dar entrevista. Segundo depoimento de Otto Lara Resende, Rosa gabava-se de escrever de pé. Antes de começar, dizia que era preciso ¿limpar o aparelho¿, ou seja, apontar o lápis, rabiscar, desenhar garatujas, até o santo baixar, quando então passava a escrever febrilmente. É aí que a porca torce o rabo, pois há quem considere charme sua concepção de literatura, digamos, mediúnica.

Segundo contou a Otto, Grande sertão era para ser conto ¿ e não dos mais longos: ¿Seria mais um biscoito, a sair prontinho de seu forno doméstico.

Começou a escrever [numa sexta-feira] e não parou mais. Entrou num delírio que prosseguiu pela noite adentro, até o sábado. Só parou obrigado pelo cansaço ou pela necessidade. Entrou pela noite de sábado para domingo. Até segunda-feira, quando tinha delineado o romance fluvial, a sua pirâmide¿.

O impacto do livro ¿ que perdura até hoje e no caderno é comentado nos ensaios de Bruno Liberati, Gustavo Bernardo e João Cezar de Castro Rocha ¿ foi imediato, praticamente dividindo a literatura brasileira em antes e depois dele. Aliás, 1956 foi um ano sublime para as letras pátrias, pois ainda deu obras-primas de Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Geraldo Ferraz, Samuel Rawet e Campos de Carvalho, aqui analisadas pelo escritor Alberto Mussa.

Na correspondência entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, confirma-se o assombro que foi o aparecimento do Grande sertão, principalmente para dois jovens escritores que davam seus primeiros passos. Escreve Fernando: ¿O melhor de tudo é o livro do Guimarães Rosa, não o Corpo de baile, que não li, mas o Grande sertão: veredas, que estou na metade mas é obra de gênio, não deixo por menos. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um monstro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com uma linguagem que nem Gil Vicente nem ninguém. No princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais¿. Responde Clarice: ¿Nunca vi coisa assim. É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente entendida pela linguagem íntima da gente ¿ e nesse sentido ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer? Fico até aflita de tanto gostar¿.

Quem também ficava aflito, mas com a fama súbita de Guimarães Rosa, era Nelson Rodrigues, que o elegeu como um de seus ¿peles¿ prediletos: ¿Ainda outro dia eu o vi na rua, com o Otto Lara Resende. De cara empinada, as duas mãos cruzadas nas costas, ele é o Guimarães Rosa em fremente lua-de-mel com Guimarães Rosa. A gente tem vontade de pedir-lhe: `Seja Guimarães Rosa com mais naturalidade¿¿. Não satisfeito, Nelson convocava os amigos para seus despautérios: ¿Dei graças quando veio o Cony e abriu um racha na apoteose crítica e unânime. Disse ele ou, por outra, repisou uma velha opinião: `É o novo Coelho Neto!¿. (..) Reynaldo Jardim explodiu: `Um bolha! Um bolha¿. Em seguida, volta o Cony e apanha, a mãos ambas, na obra do Rosa, não sei quantas frases acacianas¿.