Título: 'Quase lugar, e de repente tão bonito'
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2006, Idéias & Livros, p. 1

Dona Antonieta nunca leu um livro de Guimarães Rosa, mas há 50 anos guarda a colcha que cobria a cama quando o ''doutor'' pernoitou em sua casa. Brasinha não fez faculdade, mas discute com especialistas da USP as sutilezas da obra do conterrâneo. Calina era obrigada por seu pai a ler todos os livros enviados por ''Joãozito'' e hoje orienta crianças que aos poucos esmiuçam as descobertas de Miguilim e cenas do Grande sertão: veredas.

Moradores de Cordisburgo, cidade natal do escritor, os três são testemunhas dos caminhos percorridos por Guimarães Rosa antes da consagração. Relembram uma época em que ele forçava a vista para ler as primeiras revistas ou, mais velho, escrevia ao pai pedindo ''causos''. Até que finalmente tirou o terno de diplomata e subiu na mula Balalaika para viver como um vaqueiro. ''O sertão está em toda a parte'', mas Rosa precisava estar no sertão.

Da cidade do coração, como indica a etimologia da palavra, o futuro escritor saiu aos nove anos para estudar, mas é lembrado todos os dias pelos cerca de 5 mil moradores. José Osvaldo dos Santos, o Brasinha, ainda era um menino quando Rosa fez a viagem pelo sertão acompanhado dos lendários vaqueiros Zito, Bindóia e Manuelzão, em 1952. Mas conhece em detalhes a passagem de Rosa pelas veredas mineiras, em realidade e ficção. Os romances e contos rosianos, (muitos em primeiras edições) guarda com cuidado. A realidade colhe há anos em conversas com vaqueiros e cordisburguenses.

Brasinha é dono de uma loja de roupas na principal rua da cidade, mas raramente está atrás do balcão. Quando perguntam por ele, sua mulher, Darcy, responde: ''Está por aí, roseando''. A dedicação rendeu-lhe o apelido de embaixador do sertão e mesmo sem nunca ter estudado literatura ou lingüística, Brasinha arrisca-se a fazer análises. Que vão de desvendar neologismos a ponderar a metafísica do Grande sertão.

Tão impressionante quanto as interpretações é a memória de Brasinha, capaz de citar de cor passagens rosianas como a descrição da gruta de Maquiné, considerada a mais bonita do Brasil. Grande atração de Cordisburgo, a elevação esta no conto O recado do morro e nos poemas de Magma. Este livro, acrescenta o embaixador do sertão, foi pouco valorizado, embora contenha raízes narrativas de vários contos posteriores. Grande sertão é definido por ele como o maior livro sobre o amor, mas o amor puro, como era o de Diadorim. Seu exemplar é todo anotado e sublinhado, prática herdada de Rosa, que comentava nas margens dos livros que lia.

- Descubro diariamente nos personagens histórias locais - revela ele. - Até hoje, as pessoas da cidade acreditam no pacto com o diabo. E para quem quer mudar de sexo, como pede em desespero Riobaldo, é só passar debaixo de um arco-íris.

Longe de árvores que atraem galinhas acompanhadas de leitõezinhos e leitoas seguidas por pintinhos (uma das visões que sela o pacto com o Coisa-ruim),dona Antonieta vive sozinha, mas cercada de imagens de santos. Aos 85 anos, relembra em detalhes a visita do ''doutor João'' a sua antiga casa, a Fazenda Paulista. E até hoje guarda a colcha e talheres usados pelo escritor.

A condição de ''doutor'' era um segredo para todos, garante a mineira. Mas foi revelada em sua fazenda, quando o juramento médico foi posto à prova. O escritor se deliciava com os doces da fazenda (''de mamão verde e leite'') quando escutou uma tosse seca. Era o cunhado de Antonieta, acometido de forte gripe. Largou o caderninho, onde registrava as falas e detalhes do sertão, e foi consultar o doente. Comprimido, chá de casca de laranja e repouso, receitou.

- Homem de modos simples, ele ficou muito feliz com o jantar e a cama quentinha, depois de tantas horas em lombo de burro - relembra. - Antes de sair me disse ''que eu era muito linda'' e me deu de presente um bauzinho de madeira.

Para Calina Guimarães, prima do escritor, os presentes foram livros, histórias que era obrigada a ler e contar ao pai. Da infância na fazenda do Sarandi, retratada por Rosa, ela mudou-se para a capital para exercer a medicina. Em visita a Cordisburgo, em 1994, voltou triste ao ver que as histórias da cidade estavam guardadas nos objetos do Museu Casa Guimarães Rosa, onde não havia ninguém para contá-las. Segundo Calina, as visitas não duravam nem 15 minutos.

Foi então que a médica, em vias de se aposentar, teve a idéia de formar os Miguilins, guias que narrassem contos e ao mesmo tempo mostrassem a antiga casa. Ouvir trechos - como a passagem em que Miguilim põe os óculos e vê o mundo pela primeira vez - narrados por contadores de 13 anos emociona mesmo quem nunca leu uma única linha do escritor.

- Por meio da literatura esses meninos do interior descobriram um mundo novo. Se antes eu indicava trechos, hoje são eles que me trazem seus contos preferidos.