Título: Enfim, a República
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 20/02/2006, País, p. A2

A decisão do STF que determina a imediata demissão de parentes dos magistrados, contratados para servir ao Poder Judiciário, é mais um passo para a construção do sistema republicano. A nossa República tem sido e não tem sido, ao longo dos últimos 116 anos. Em seu início, manteve certos costumes monárquicos, como o de premiar os serviços excepcionais prestados ao Estado, com prebendas generosas, como ocorreu, entre outros casos, com a gratificação - e pensão vitalícia - a Rio Branco e a seus descendentes, pelo êxito nas negociações sobre as questões fronteiriças. Servir ao Estado, de uma forma ou de outra, é obrigação de todos os que se considerem cidadãos. No início da democracia grega, os cargos públicos eram preenchidos por sorteio. A fim de que os escolhidos dedicassem todo seu tempo à sociedade, impôs o misthos, a indenização pelo serviço. Só mais tarde surgiria a burocracia administrativa, com a remuneração formal dos funcionários. O serviço ao Estado passou a ser temporário por eleição, e permanente, por mérito. Isso nos sistemas republicanos. As constituições monárquicas deixavam ao critério do príncipe a responsabilidade da escolha, e se chegava à licitação de cargos públicos, incluídos os da Justiça.

Levamos alguns decênios republicanos até que o presidente Getúlio Vargas instituísse o concurso público para a seleção dos servidores do Estado. O sistema começou a ser violado no governo Dutra, com a nomeação de interinos, sob o pretexto da agilidade da administração. O governo militar foi além, ao adotar a terceirização dos serviços. Com tais empresas fornecedoras de mão-de-obra, voltamos ao tempo da escravatura, no qual vários capitalistas mantinham, durante o Império, cativos de aluguel. Uns, mais modestos, viviam do trabalho de poucos escravos, como certos personagens de Machado; outros dispunham de tropas inteiras de trabalhadores. A diferença entre aquele e o nosso tempo está na ficção salarial.

Na decisão do Supremo, além da confirmação do mandamento constitucional de que todos devem ser iguais e ter iguais oportunidades, houve passo importante para a recuperação ética do Poder Judiciário. Alguns juízes, em todos os tempos, se deixaram contaminar pelos germes da corrupção, e reconhecer esse fato é importante para que respeitemos a instituição em seu todo. As exceções perversas, como a de vários juízes envolvidos no crime organizado, não podem inquinar o Judiciário, mesmo porque a instituição tem sabido reagir, pronta e duramente, contra tais quadrilheiros de toga. Mas - e disso sabem os próprios membros do Supremo - o Poder Judiciário não é constituído de anjos ou santos. A vigilância da cidadania (além do sistema democrático dos checks and balances) inibe os inclinados aos desvios, mas não garante a pureza moral de todos eles.

O nepotismo é a apropriação familiar do Estado, comum nas monarquias, a começar pela do Vaticano, em cuja hierarquia surgiu a expressão. Não podendo deixar aos filhos o poder, os papas entregavam a administração da Igreja aos sobrinhos, quando não os direcionavam, ainda na adolescência, e mediante o cardinalato, para que chegassem a sentar-se no trono de Pedro. No caso brasileiro, o nepotismo no Judiciário constituía escárnio. Os cidadãos foram constrangidos a ouvir uma desembargadora dizer que tinha centenas de parentes e só nomeara dez deles. Se o princípio da eqüidade - e justiça é eqüidade, na fórmula magistral da mesotes aristotélica - é violado pelos juízes, podemos perguntar para quem devem apelar os homens comuns.

O mais elevado princípio republicano é o da igualdade diante da lei. Já temos exceções de sobra, no sistema penal brasileiro, que permitem aos advogados evitar ao máximo a condenação dos ricos e poderosos, e que privilegiam os detentores de diplomas universitários, quando o conhecimento lhes devia ser agravante. É de se esperar que outros passos venham a ser dados para que a República, proclamada em 1889, venha a ser exercida. Um deles é a extensão da proibição do nepotismo aos outros poderes do Estado, como está propondo o deputado Aldo Rebelo. Outro é a urgente devassa nos processos de privatização do patrimônio nacional.