Título: Cor da pele dita reforma agrária
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 19/02/2006, Internacional, p. A12

Pressionado pelo Movimento Sem Terra e por representantes da esquerda, o governo da África do Sul anunciou que vai rever a política de expropriação de terras para acelerar a reforma agrária no país. Mas, diferentemente do Brasil, o critério sul-africano não é de tomar fazendas improdutivas. Lá, o processo visa à devolução aos negros das terras usurpadas desde a década de 30 e durante o regime segregacionista do apartheid, que terminou nos anos 90. É uma reforma agrária cujo critério é a cor da pele.

- Trata-se de compensação histórica. Estas terras eram dos negros antes do apartheid - afirma ao JB o cientista político Omano Edigheji, do Centre for Policy Studies, em Johannesburgo.

Quinze anos depois do fim do regime que isolava os nativos dos imigrantes europeus, o setor agrícola é o último bastião de poder branco na África do Sul. Hoje, 96% das terras comercialmente viáveis estão nas mãos dos brancos, que compõem apenas 10% da população de 45 milhões de pessoas.

Desde que assumiu o poder, o Congresso Nacional Africano (CNA), liderado em 1990 por Nelson Mandela, fez da reforma agrária uma de suas principais promessas. Mas pouco se avançou. Apenas 3% das terras voltaram aos negros. A política apoiada pelo Banco Mundial é a de ''querer vender-querer comprar'', ou seja, fazendeiros comunicam ao governo que desejam colocar sua propriedade à venda e estipulam o preço, de acordo com o livre mercado. Foi por desajustes neste ponto que o presidente Thabo Mbeki resolveu tomar as rédeas da situação.

- Os poucos proprietários que queriam vender a fazenda colocavam um preço alto demais. Agora, é o conselho presidencial que vai avaliar o valor da terra - explica Brian Ashley, diretor da ONG sul-africana Alternative Information and Development Centre, que lida com a questão agrária.

O respaldo legal para a expropriação na África do Sul é a Lei de Reclamações de Restituição, segundo a qual famílias negras lesadas com expulsão da propriedade no apartheid têm até o final de 2008 para pedir judicialmente suas terras de volta. Até hoje, o governo recebeu 79 mil solicitações. Várias estão emperradas por falta de consenso financeiro entre fazendeiros e autoridades.

- Expropriar estas terras para o programa de restituição não é ilegal, é uma política implementável junto com a de livre mercado do Banco Mundial - diz Isabella Kenfield, especialista em programa agrário da Universidade da Califórnia. - E é uma forma de o governo agilizar a reforma agrária.

Para Mercia Andrews, diretora da Trust for Community Outreach and Education, ceder ao preço abusivo dos fazendeiros também seria um desrespeito do governo aos cidadãos.

- O dinheiro que compra estas terras vem do bolso do contribuinte sul-africano. Nos perguntamos se as vítimas do apartheid vão ter de pagar o dobro pela violência que sofreram - critica.

O International Crisis Group alertou que a violência rural pode aumentar na África do Sul se a administração Mbeki não acelerar a reforma agrária. Influenciado pelo modelo brasileiro, o Movimento Sem Terra local ameaça ampliar a até agora tímida campanha de invasões.

- A tática de ocupação não-violenta é claramente inspirada no MST brasileiro - assegura Isabella.

Com a reforma agrária, o governo de centro-direita espera impulsionar o crescimento econômico baseado em produtividade comercial agrícola. Para os setores sociais, o significado vai além.

- É a chance de uma mudança democrática e redistribuição de riquezas - afirma a pesquisadora.