Título: O fim do título de eleitor
Autor: Vassia Pouchain
Fonte: Jornal do Brasil, 23/02/2006, Outras Opiniões, p. A11
Neste momento pré-eleitoral, nada melhor do que repensar o instrumento que nos possibilita exercer a cidadania: o título de eleitor. Proponho aqui o seu fim, não como uma medida desesperada de economia de recursos, ou com o intuito de negar cidadania a quem quer que seja. Na verdade, esta mudança é o processo de exclusão de um documento anacrônico. Tendo como ponto de partida a redemocratização brasileira, esta medida será o ápice de algo que vem acontecendo aos poucos, quase a conta-gotas. É o processo de reconstrução nacional que está, paulatinamente, sacudindo as estruturas arcaicas da política brasileira.
Seu primeiro ato fundamental para a transformação social foi a Emenda Constitucional número 25, de 15 de maio de 1985, que permitiu a grupos sociais, antes alijados do processo, o acesso à vida política: o analfabeto, os menores de 18 anos e aqueles que têm mais de 70 anos. A todos foi concedido o voto facultativo. Entretanto, vale a pena realçar que o primeiro, assim como os pobres do passado, eram vistos como os grandes causadores da corrupção do mundo político. Os defensores dessa idéia atribuíam-lhes a incapacidade de boa ''escolha''. Neste momento o voto passou a ser, então, o exercício da cidadania em construção. Nos anos 1990, abriu-se a possibilidade de votar com o documento de identidade, sendo assim, o primeiro passo para o fim deste documento.
Mas, afinal, qual foi a origem do título de eleitor? Como mostra José Murilo de Carvalho, em Teatro das sombras (Editora Nova Fronteira, 2003), quando surgiu, em 1875, este documento tinha um objetivo marcante: determinar quem era cidadão e, com isso, ter direito a participar do processo eleitoral. Essa estratégia da elite permitia que o jogo político ficasse mais previsível, pois se sabia de antemão quem votaria. Epílogo da monarquia, da escravatura e do coronelismo, esse momento de construção de uma política com embasamento societal mínimo, sem grandes interferências no governo, acabou!
O título virou resquício de um passado distante. Hoje em dia ele não é o único instrumento para se votar. Eu, por exemplo, só voto com a carteira de motorista, que é um instrumento de identidade, pois possui os dados do CPF e do RG, além da foto. O título não possui nenhum destes elementos. Mas a carteira de motorista não é a única opção possível. Se quisesse, poderia utilizar ainda o passaporte, a carteira de identidade ou de trabalho. Sendo assim, é um documento desnecessário, não só para votar, como também para existir. Ademais, facilita a corrupção eleitoral. Qualquer um pode obter um e votar por quantas pessoas quiser, já que não há a foto. Basta que a pessoa seja do mesmo sexo do que a do título. Aliás, nas últimas eleições (2004) houve um caso assim. Um veio à tona, mas imaginem os que não vieram...
Posto isso, urge que o título de eleitor seja esquecido e sepultado para as próximas eleições. Quanto papel e burocracia serão reduzidos com um simples ato. Se querem a obrigação do voto para concurso público, emprego etc, basta exigir agora o comprovante de votação; se visam cadastrar o adolescente no universo eleitoral, faça com que ele se inscreva antes da eleição; se o intuito excluir alguém da lista de votantes, estabeleça que o cartório envie à junta eleitoral uma cópia da certidão de óbito. Em suma, deixemos o título em paz junto à escravidão, à monarquia e ao nosso passado de desigualdades cidadãs.