Título: Estímulo à violência
Autor: Hélio Bicudo
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2006, Outras Opiniões, p. A13

Juristas e jornalistas estão cometendo evidente e lamentável equívoco ao analisar a absolvição do ex-coronel da PM paulista, responsável pelo massacre do Carandiru, no dia 2 de outubro de 1992, considerando ilegítima sua condenação pelo Tribunal do Júri de São Paulo. Em primeiro lugar, quem qualificou de política a decisão do órgão especial do TJ foi o desembargador Walter Guilherme que, com seu voto, abriu espaço para uma absolvição quem tem tudo para ser qualificada como resultado de mais um lobby da poderosa PM de São Paulo. Em segundo lugar, a interpretação dada pelo juiz e por aqueles que o acompanharam, segundo alguns, de grande experiência jurídica, não encontra supedâneo no direito escrito brasileiro.

Vejamos. O artigo 23, do Código Penal, em sua nova redação, estabelece que não serão punidos aqueles que cometem ato anti-jurídico em legítima defesa, estado de necessidade ou em estrito cumprimento do dever legal. Adverte, porém, o parágrafo único desse artigo que em todas essas hipóteses o agente responde por excesso doloso ou culposo (lei 7.209, de 11 de julho de 1.984)

É certo que, na redação originária, não se cogitava, relativamente as excludentes mencionadas, em excesso doloso, imposto hoje pela nova redação, segundo a lei que alterou a Parte Geral do Código Penal. A nova lei disciplina a questão de maneira absolutamente coerente na aplicação da lei penal, pois não há incongruência em reconhecer o excesso doloso ou culposo a quem se atribui o benefício de qualquer das aludidas dirimentes. Aquele que age em estado de necessidade pode exorbitar em sua atuação na ânsia de salvar-se e sacrificar terceiro quando isso não era necessário. Da mesma forma, na legítima defesa, que a lei, na sua versão anterior, repelia o excesso culposo. No caso da Chacina do Carandiru, os jurados entenderam que era legítima a intervenção policial, mas ao mesmo tempo consideraram que o comandante da operação exorbitou, reconhecendo o excesso doloso.

Onde está, pergunta-se, a incongruência reconhecida pela enxurrada de desembargadores que se apressaram em alinhar-se a uma fala política, em vez de acompanhar as considerações técnico-jurídicas do relator e do revisor? Confira-se a lição de Enrico Ferri: os funcionários e agentes públicos têm o dever de executar a lei, usando das faculdades a eles reconhecidas pela própria lei. Pelo que os atos por eles praticados no cumprimento deste dever - mesmo com o uso de armas, nos casos previstos na lei - embora danificando ou suprimindo interesses e direitos individuais (propriedade, liberdade pessoal, vida, etc.), não têm caráter criminoso, a menos que não ultrapassem em excessos (grifo nosso), determinados por motivos anti-sociais, pelos quais o funcionário público abusa de seu poder (Princípios de Direito Criminal, 1931, ps 499 e 450).

Poderíamos citar, ainda, a lição de Sebastian Soler. Para que se integre a excludente, diz o insigne penalista, ''torna-se necessário, conditio sine qua non, que o funcionário ou agente do Estado se conduza estritamente. Transpondo os limites traçados pela lei surgirá, conseguintemente, o abuso de poder, que é o excesso doloso na atuação dos mesmos, nos casos legais'' (Direito Penal, I/361, 27,II).

A reforma de 1984, recompondo a Parte Geral do Código Penal, atendeu ao que mais de moderno subsiste até hoje na doutrina do Direito Penal, ou seja, na caracterização do crime e de sua autoria. E mostra que os jurados, no julgamento do massacre, entenderam legítima a presença da PM no presídio, mas consideraram fora do âmbito legal a atuação in loco. Daí terem reconhecido o excesso doloso, quesito ao qual não poderiam se abster de votar por imposição legal (parágrafo único do artigo 23, do Cp.). Reconhecido o excesso, repudiou, o Corpo de Jurados, a jurisdicidade da intervenção policial, e daí a condenação.

Como se vê, um corpo, dito o mais experiente, violou de maneira flagrante o dispositivo do Código Penal e com isso dá alentos à impunidade e à conseqüente violência policial. É, sem dúvida, um desdouro para um dos mais prestigiosos tribunais do país. Oxalá ainda se faça a Justiça, com a oportuna intervenção do Superior Tribunal de Justiça, por via do recurso que certamente o Ministério Público paulista irá interpor.

Hélio Bicudo é presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos.