Título: Hannah Arendt: controvertido centenário
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 27/02/2006, Outras Opiniões, p. A9

Comemora-se neste ano de 2006 o centenário de uma das mais fascinantes pensadoras do século 20: Hannah Arendt. Uma das mulheres mais carismáticas do século que passou, só muito recentemente foi valorizada de forma justa.

Hannah Arendt nasceu em Hanover, em 1906, e teve uma infância difícil, embora sua educação tivesse ocorrido num meio intelectual e artístico, permitindo e propiciando a tolerância e a abertura de pensamento. Filha única, perdeu o pai aos seis anos, o qual, antes disso, se encontrava doente e paralítico. Inteligente e bonita, estudou Filosofia, Teologia e Filologia Clássica. Foi, sucessivamente, aluna de Jaspers, de Heidegger, de quem foi amante e de Bultmann e, sob a direção deste último, realizou a sua tese de Doutoramento em Filosofia sobre ''O Conceito de Amor em Santo Agostinho.''

Tardiamente, em 1929, Hannah despertou para a questão do judaísmo e da exclusão dos judeus da Alemanha. Sofreu decepções terríveis por parte de amigos seus que aderiram ao nazismo, em especial de Heidegger. Em 1931, partiu para o exílio em Paris. A conscientização progressiva da questão judaica, o sofrimento de exilada e a morte precoce de amigos levaram a que Hannah se definisse como ''Mulher, judia, mas não alemã''.

Ligando-se às organizações sionistas e lutando pelo nascimento e independência de Israel, Hannah militou pela causa israelense, facilitando a imigração de crianças judias para a Palestina. Sua posição será sempre a de uma preocupação simultânea com a preservação da independência e o respeito pelas dificuldades relativas à questão árabe.

Em 1941, iniciou seu exílio nos Estados Unidos, onde teve papel fundamental na ida de amigos judeus em dificuldades. Suas primeiras impressões do país são de uma intensa admiração, fascinada pela liberdade da democracia americana. No entanto, esse entusiasmo pela espontaneidade, civismo e paixão pela justiça, não altera sua enorme lucidez quanto às contradições da sociedade norte-americana. Salienta a contradição entre a liberdade política e a servidão social, o racismo contra os negros e o anti-semitismo ao qual os judeus reagem, isolando-se dos americanos.

A partir de 1948, seu tom tornou-se bastante crítico contra a implantação do maccarthismo e das perseguições aos comunistas. O ambiente de liberdade que sentira inicialmente sofreu intensa deterioração, ao grassar um espírito de suspeita e denúncia por toda parte, que envenenava a vida política, social e intelectual do país. Hannah Arendt, muito marcada por seu passado, mas também pela nova situação, não hesitou em condenar o estado das coisas em suas publicações. É esse o contexto que lhe serve de base para a redação de sua famosa obra, As Origens do Totalitarismo. Aí demonstra com toda a clareza o caráter inédito do totalitarismo político, enquanto revelação de um mal absoluto que sustenta, não apenas a causa de crimes não puníveis, mas também imperdoáveis. E, no ano de 1952, mantém sua imperturbável coerência, ao romper com a política do Estado de Israel após massacres perpetrados contra o povo árabe, em Kybia.

Em 1961, ela pedirá ao New Yorker para cobrir o processo de Adolf Eichmann, alto colaborador de Hitler no processo da ''solução final'' que resultou no genocídio dos judeus. Considerava que ''assistir a esse processo é uma obrigação que devo ao meu passado.'' Os cinco artigos em que expôs as minutas do processo Eichmann em Jerusalém suscitaram contra ela a indignação de inúmeros judeus. O resultado deste processo culminou na redação da obra tão controvertida, intitulada: Eichmann em Jerusalém. Relato sobre a banalidade do mal. Neste livro, Hannah expõe suas idéias sobre a responsabilidade dos carrascos e das suas vítimas, e também dos comitês judaicos.

No dia 4 de dezembro de 1975, Hannah Arendt morre, aos 69 anos, vítima de uma crise cardíaca. Sua grande contribuição parece ser a reflexão de que quando a violência e o mal se tornam banais disfarçados sob as máscaras da rotina e dever a cumprir, se tornam mais perigosos. Talvez seu gênio feminino tenha sido especialmente adequado para denunciar essa face sutil do reino das sombras e do mistério da iniquidade. Que seu centenário seja para nós ocasião de refletir sobre essa fatal banalidade.