Título: Do entrudo ao `vale-tudo¿
Autor: Ubiratan Iorio
Fonte: Jornal do Brasil, 27/02/2006, Outras Opiniões, p. A9

Nesta segunda ''gorda'' de carnaval, a mais popular de nossas festas, falar de economia e de política não vale. Em seu lugar, cabem algumas reflexões sobre como o carnaval vem evolvendo, desde meados do século 19 até os nossos dias, no Rio de Janeiro. Afinal, o chamado ''tríduo momesco'' faz parte da nossa cultura e, portanto, reflete os valores, hábitos, usos, tradições e costumes de cada época. O carnaval carioca começou com o entrudo, na primeira metade do século 19, em que limões de cheiro e seringas de folha de flandres com água, às vezes mal cheirosa, eram usados para molhar outros foliões, ao lado de farinha de trigo, pó de sapateiro e piche para sujá-los. Era uma brincadeira algumas vezes violenta e sem música própria, animada por vaias e gritarias, até ser proibida no ano de 1853, por determinação do chefe de polícia. O carnaval carioca propriamente dito começou a delinear-se em 1852, quando o português José Nogueira de Azevedo Paredes foi para as ruas comandando um grupo de tocadores de bumbos, aos gritos de ''zé pereira'', inaugurando a característica, que se mantém até hoje, de se usar instrumentos de percussão para animar a festa.

A primeira música efetivamente feita para o carnaval foi o famoso Ô Abre Alas, composto em 1899, pela famosa e talentosa maestrina Chiquinha Gonzaga que, morando no Andaraí e observando o ensaio do cordão Rosa de Ouro, sentou-se ao piano e criou aquela célebre marcha rancho, hoje um clássico da nossa música popular. A partir dali, ganhava o carnaval sons próprios e, do início até meados do século passado - o período de ouro da festa -, centenas de marchas e sambas, frevos e ranchos, de excelente qualidade, eram compostos todos os anos, especialmente para os festejos, em memoráveis concursos, que revelaram verdadeiros gênios do gênero, como o maior de todos, Lamartine Babo, o grande Braguinha e o pernambucano Capiba, cujas marchinhas e frevos transformaram-se em inquestionáveis patrimônios populares. Havia os desfiles de préstitos das grandes sociedades, os de ranchos e os das primeiras escolas de samba que desciam ao asfalto - ou melhor, ao paralelepípedo - e, também, os corsos de automóveis conversíveis, os cordões, os bondes e os bailes de clubes, realizados com muita alegria, mas em ambiente de respeito. A maioria dos foliões brincava pela justa alegria de cantar e dançar, já que - como diria o Maguila -, as ''saliências'' ficavam para os outros 363 dias do ano... Bebiam-se alguns chopes e pronto, todos à folia!

Daquele carnaval, hoje, só restam cinzas e nada mais. Desapareceram os préstitos e os ranchos, feneceram os corsos, silenciaram os clubes, sumiram o pierrô, a colombina e o arlequim, levando com eles o confete, a serpentina e o lança-perfume, escassearam os mascarados. Perdeu-se, enfim, a espontaneidade, exatamente a marca maior do carnaval. As escolas de samba, após a criação do Sambódromo e a excessiva regulamentação do desfile, transformaram-se em holofotes para famosos e oportunistas; os sambas, sufocados pelo tempo exigido para o desfile, aceleraram-se - em breve chegarão ao prestíssimo! - e distanciaram-se, para pior, de suas raízes; vieram os ''carnavalescos'' das escolas, as ''rainhas de bateria'', os carros alegóricos, o monopólio nefando da transmissão do evento, os terríveis ''jurados'' que atribuem notas com a precisão de uma casa decimal, a natural suspeita de corrupção e a espontaneidade - fora alguns blocos e bandas de bairros - foi passar os carnavais longe do Rio. Ao povo sem binóculos, o óbolo da pista da Presidente Vargas que leva para a Praça da Bandeira...

Se no começo foi o entrudo, hoje o carnaval é um autêntico vale-tudo, em que a música é o sexo, com a harmonia do eros, a melodia do sensual e o ritmo do pornô... Luxúria, nudez, lascívia, lubricidade, concupiscência, mulheres apresentando-se em público tal como vieram ao mundo... Incentiva-se tanto nesta época o erotismo que milhões de reais de recursos públicos do ministério e das secretarias que deveriam cuidar da Saúde são gastos na distribuição de milhões de preservativos, enquanto muitos milhões de pobres coitados perambulam em hospitais públicos ou são forçados a permanecerem longas horas em filas, à espera de um atendimento precário. É o Estado acolhendo - e, às vezes, infelizmente, até estimulando - a libertinagem e é a sociedade aceitando que, já que os valores morais se degradaram tanto, é melhor aceitar esse fato e cair na gandaia do que investir em uma reeducação moral. O carnaval, tal como a sociedade de que é um reflexo, está doente, de cabeça, corpo, mente e espírito!