Título: O Brasil está nadando em dinheiro?
Autor: Paulo Nogueira Batista Jr.
Fonte: Jornal do Brasil, 28/02/2006, Outras Opiniões, p. A9

Assunto indigesto para uma terça-feira de carnaval. Na semana passada, o governo anunciou a decisão de recomprar, em abril, os títulos da última reestruturação da dívida externa (Plano Brady). O total a ser retirado do mercado chega a US$ 6,6 bilhões, incluindo papéis que venceriam até 2024. Como a operação libera garantias, o desembolso de reservas será de US$ 5,1 bilhões. Essa decisão vem na esteira de outras, do mesmo tipo. Em dezembro, o governo brasileiro antecipou pagamentos de US$ 15,5 bilhões ao FMI, liquidando de uma só vez obrigações que venceriam ao longo de 2006 e 2007. Em janeiro, foram antecipados pagamentos da dívida reestruturada no Clube de Paris, de US$ 1,7 bilhão. Nos meses recentes, o governo já tinha recomprado em mercado mais de US$ 2 bilhões de títulos da dívida externa pública.

Portanto, entre dezembro e abril, o governo terá antecipado um total de amortizações de cerca de US$ 25 bilhões aos credores externos, o que equivale a quase 40% das reservas existentes em novembro de 2005.

A vantagem de antecipar todos esses pagamentos é duvidosa, para dizer o mínimo. O governo alega que está reduzindo a sua dívida externa e economizando no pagamento de juros. Mas o indicador mais relevante do nível de endividamento é a dívida líquida e não a dívida bruta. Como esses pré-pagamentos estão sendo feitos com recursos das reservas internacionais, não há diminuição da dívida externa líquida do governo, definida como a dívida bruta externa menos ativos externos. A dívida bruta diminui, as reservas diminuem no mesmo montante e a dívida líquida fica inalterada.

Há sem dúvida uma economia de juros, que beneficia o balanço de pagamentos. As taxas de juro das dívidas pré-pagas superam em alguns pontos percentuais as taxas que remuneram as reservas. Mas esse benefício é sobrepujado pelo elevado custo fiscal da operação, a que farei referência na seqüência.

Outro aspecto: será que o Brasil está com reservas excedentes, que nos permitem antecipar tranqüilamente volumosos pagamentos aos credores? A maioria dos principais países emergentes tem reservas superiores, às vezes muito superiores, às brasileiras. O Brasil tinha reservas de US$ 64 bilhões em novembro, antes da liquidação antecipada da dívida com o FMI. Agora está com US$ 58 bilhões. A China (exclusive Hong Kong) tem US$ 820 bilhões; a Coréia do Sul, US$ 217 bilhões; a Rússia, US$ 181 bilhões; a Índia, US$ 133 bilhões; o México, US$ 74 bilhões.

O cenário nacional e internacional afigura-se razoavelmente tranqüilo, pelo menos no curto prazo. As contas externas ainda estão fortes, a despeito da apreciação do real. Mas quem pode garantir que as reservas desembolsadas agora não nos farão falta em algum momento futuro?

É verdade que as reservas brasileiras aumentaram consideravelmente no passado recente. Desse ponto de vista, a situação já foi pior. Mas a pergunta que precisa ser feita - e aqui chegamos ao ponto mais importante - é: como está sendo financiada a acumulação de reservas? Fundamentalmente, com emissão de títulos da dívida mobiliária federal. O governo emite reais para comprar reservas em mercado e ''esteriliza'' o impacto monetário dessa compra com a venda de títulos da dívida interna.

A dívida federal em títulos tem crescido rapidamente e já alcança quase R$ 1 trilhão. Mais da metade está vinculada à taxa Selic. Excluindo os títulos indexados ao câmbio, o custo médio dessa dívida vem oscilando entre 17% e 19% a.a. O seu prazo é curto. Para os títulos emitidos em oferta pública, o prazo médio (considerando fluxos de principal e juros) tem oscilado entre 20 e 23 meses.

As condições da dívida externa são mais favoráveis. O custo médio dos títulos federais externos é 9% a.a. em dólares. O seu prazo médio (considerando fluxos de principal e juros) tem sido superior a seis anos.

O leitor percebe aonde quero chegar. Em última análise, o governo está transformando dívida externa em dívida interna. Ou seja: dívida externa relativamente barata e, em alguns casos, de prazo mais longo está sendo paga antecipadamente com a criação de dívida interna, muito mais cara (em condições de razoável estabilidade cambial) e de prazo bastante curto. Maravilha! Decididamente, o Brasil está nadando em dinheiro.