Título: O exemplo de Nelson Rodrigues
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 28/02/2006, Outras Opiniões, p. A9

O vírus do conformismo foi inoculado nos intelectuais brasileiros, sempre vacilantes na hora de pensar por conta própria, na década de 1980. Faz mais de vinte anos e ele ainda não foi debelado. Raros são os espíritos vacinados. A maioria acomodou-se, rendeu-se, quase todos vulneráveis às estruturas seculares que fazem do Brasil uma nação da periferia do mundo. Pensar é, em linhas gerais, contradizer a maioria dos que nos cercam. Manifestar opiniões controversas é ou deveria ser a marca de todo intelectual.

Eu fazia o doutorado na USP, em São Paulo, quando José Guilherme Merquior flagrou Marilena Chauí plagiando o filósofo francês Claude Lefort. Ele recebeu de imediato a condenação eterna, ainda que tivesse provado o plágio. Raros foram os que tiveram coragem dali por diante de admitir que liam JGM. Citações foram rapidamente expurgadas.

E, no entanto, ele era e é um dos nossos mais ousados intelectuais. E, coisa também inédita, intelectual com obra!

Porque entre nós viceja também o intelectual que apenas fala ou, muito preguiçoso, escreve apenas alguns poucos textos curtos, reúne de tempos em tempos o que obrou, galga rapidamente a lista de citações, tempos depois dá adeus e vai embora. Já na década seguinte ninguém mais saberá quem foi, quem era, o que disse.

O exemplo de Nelson Rodrigues, de errar ou acertar, mas por conta própria, não foi seguido senão por poucos. Reli sua entrevista à Playboy, concedida em novembro de 1979, agora integrando antologia de trinta entrevistados.

A luz do gênio acende quando perguntam como foi a infância. ''Eu fui um trágico como todo menino. Você sabe que o adulto é um sujeito raso que uma formiguinha atravessa a pé, com água pelas canelas''. E acrescenta: ''as paixões mais sérias do homem são dos 6 aos 10 anos''. As amadas? As professoras!

Uma delas, justamente a de redação - sim, todos aprendiam a escrever nos primeiros anos escolares - propõe que, em vez de inspirar-se nas tradicionais estampas de vacas e pintinhos, cada um poderia escrever sobre tema de livre escolha.

Nelson tinha 7 anos. Sua redação foi ''uma história tremenda, de adultério''.

Foi sua certidão de batismo como escritor. Mas a composição, apesar de bem escrita, era escandalosa: um marido traído matava a esposa. Ao escolher as duas melhores redações, a professora, desconcertada, optou por um empate. O texto do outro aluno era sobre o passeio de um rajá no seu elefante favorito.

Não tivera educação sexual na infância e a considerava dispensável. ''Quando há o amor, o sexo é de uma irrelevância absoluta''. ''O amor é o único motivo de tristeza e solidão''.

Nelson, como um encantador de serpentes, segue dizendo que o fato de um homem ser amado por uma mulher e amá-la não tem nada a ver com a vida sexual dos dois. Inteligência? ''São milhões de imbecis para dez sujeitos formidáveis''.

Define-se assim: ''eu me dou com sujeitos que pensam o contrário do que eu penso''. ''Uma qualidade minha, que me faz sofrer como um bezerro desmamado, é a bondade''. E como reconhecer quem é bom? ''É uma evidência objetiva, espetacular. É o óbvio ululante''.

E uma triste constatação, antes de dizer que achava simpático Lula ser famoso por não ter feito nada: ''o mundo só se tornou viável porque antigamente as nossas leis, a nossa moral, a nossa conduta eram regidas pelos melhores. Agora a gente tem impressão de que são os canalhas que estão fazendo a nossa vida. Os canalhas ou os imbecis, e eu não sei dizer o que é pior''.

Também não sei, mas uma coisa é certa: canalhas e imbecis não querem saber de autores e de livros que os identifiquem. E já não disfarçam que abominam quem pensa e preferem o convívio com hortaliças disfarçadas de gente. Claro, semelhando couves e repolhos, juntam-se agradavelmente nos canteiros.