Título: Fantasmas em Santo André
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 04/03/2006, Opinião, p. A10

Num caso marcado pela profusão de sombras a iluminar, é estarrecedora a decisão de familiares do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel de deixar o país. O exílio voluntário, segundo a versão da família, foi motivado por ameaças de morte. Trata-se de mais um estranho capítulo de um enredo nebuloso, exibido desde a descoberta do cadáver do petista numa estrada de terra, horas depois de jantar em São Paulo. Bruno, irmão caçula de Daniel, sua mulher, Marilena, e os três filhos do casal deixaram o Brasil nesta semana. Um dos dois filhos do médico João Francisco Daniel - irmão mais velho do prefeito assassinado - também deverá sair do país nos próximos dias. Em depoimentos à Polícia e à CPI dos Bingos, os irmãos de Daniel endossaram a suspeita do Ministério Público, de que o crime tem raízes políticas. O ex-prefeito teria se contraposto a um vasto esquema de corrupção que achacava empresas de ônibus de Santo André. Quatro anos depois do assassinato, os fantasmas arrastam correntes com inesgotável paciência. Investigações conduzidas por promotores paulistas comprovaram que empresários foram extorquidos por autoridades da Prefeitura de Santo André.

Os desdobramentos da história trouxeram ao palco figuras suspeitíssimas, das quais homens de bem não comprariam bicicletas. Uma é Klinger Luiz de Oliveira Souza, secretário de Serviços Municipais. Outra é Sérgio Gomes da Silva, o ''Sombra'', amigo íntimo do prefeito e seu parceiro no jantar que precedeu o seqüestro. João Francisco Daniel confirmou a existência de extorsões, que teriam sido institucionalizadas para financiar campanhas do PT. Ao constatar que os extorsionários vinham desviando parte do dinheiro para os próprios bolsos, Celso Daniel se teria rebelado contra o esquema. Depósitos de companhias de transporte urbano em favor de ''Sombra'' confirmaram o que dissera um dos empresários que denunciaram o esquema em Santo André.

Duas testemunhas do assalto ao veículo em que estavam o prefeito e Gomes da Silva sublinharam o comportamento estranho deste: mais parecia um comparsa dos bandidos do que propriamente a segunda vítima da ação. As evidências colhidas pelo Ministério Público e pela nova investigação da Polícia Civil desmontaram as conclusões do primeiro inquérito sobre o caso, que atestava o crime comum para a morte do prefeito.

Os estranhíssimos episódios constatados nos últimos anos acrescentaram ingredientes de causar inveja a qualquer romance policial. Seis personagens que tiveram relação com o caso morreram ao longo da investigação. E agora, para consumar, as ameaças de morte seguidas da decisão de familiares de deixar o Brasil.

O Ministério da Justiça e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo devem explicações. Até então, segundo as autoridades federais e estaduais, não havia nenhum pedido de proteção de familiares à Polícia Federal ou qualquer outro órgão vinculado ao ministério ou à secretaria. De acordo com os irmãos de Daniel, no entanto, as intimidações começaram a chegar pouco depois do depoimento de ambos, em 26 de outubro, à CPI dos Bingos.

Enquanto isso, os comandantes petistas continuam a insistir na tese de crime comum. Têm o direito de pensar assim. Não podem, contudo, alimentar as sombras que persistem no caso. Logo depois do assassinato, Aloizio Mercadante e José Dirceu chegaram a insinuar a existência de um complô articulado pela extrema direita para barrar a eleição de Lula. Com a prisão dos assassinos de Celso Daniel, os dirigentes do PT acharam melhor declarar o episódio resolvido. (Em conversas reservadas, os próprios petistas seguiram murmurando que havia mais coisas por trás daquilo tudo, mas ponderavam que não valia a pena prosseguir nas escavações. Acabariam danificando a imagem de alguém que fora, essencialmente, um homem de bem.)

Há tumores a remover, mas o PT e o governo preferem o silêncio. Ao fazê-lo, transformam um assassinato em conversa fiada.