Título: É com isso que sonhamos?
Autor: Gilson Caroni Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 04/03/2006, Outras Opiniões, p. A11
É agora ou nunca. Um relatório do BID mostrou que a América Latina encerrou os anos 1990 com a terceira pior renda per capita do mundo. Segundo o Banco Mundial, a região, após ajustes importadores, amplas liberalizações financeiras, privatizações e fraturas produtivas, abriga 200 milhões de pobres e pouco mais de 100 milhões de miseráveis. Eis o saldo de quase 20 anos de aplicação do receituário neoliberal. E é nesse cenário de terra arrasada que ressurge, com vigor, o sonho da Grande Pátria de Simón Bolívar. Uma integração regional que não se limite a zonas de livre-comércio e redes de infra-estrutura física. Mas que, incorporando as novas multidões latino-americanas, contemple dimensões históricas, políticas e culturais comuns. Uma empreitada que torne a cooperação indissociável da reinvenção democrática. Que aproveite a complementaridade das diferentes economias, superando assimetrias através da concretização de propostas como as da criação de um Banco do Sul. É isso ou a aceitação de um novo estatuto colonial. Não há outra saída.
O diplomata Nestor dos Santos Lima em seu livro ''A imagem do Brasil nas cartas de Bolívar'' mostra, em texto preciso, a ignorância que expressivos segmentos da América Hispânica têm sobre o nosso país. O desconhecimento de identidades fundamentais entre o Brasil e seus vizinhos requer uma nova ordem informativa no subcontinente. Processo comunicacional horizontalizado que integre, respeitando as singularidades culturais, um espaço atravessado por polarizações políticas e sociais. Nesse sentido, o canal de TV Telesul, multiestatal administrada pela Venezuela, Argentina e Uruguai cumpre efetivo papel contra-hegemônico ao assegurar veiculação de conteúdo para diversos movimentos sociais latino-americanos. Somemos a isso a construção de um gasoduto sul-americano e a criação do Conselho de Defesa para aquilatarmos o tamanho do passo dado.
O que dá mais sustentação a um projeto estratégico regional é justamente aquilo que setores conservadores, dentro de um viés funcionalista, têm chamado de crise política. Ou ''retórica nacionalista imprecisa''. Trata-se, na verdade, do amadurecimento de forças historicamente marginalizadas. Novos sujeitos de direito dispostos a interpelar o cenário político e as várias democracias pactuais existentes. O que presenciamos, principalmente na Bolívia e no Equador, é a transição de regimes oligárquicos para democracias fortalecidas pela lutas populares. A rigor, nem mesmo direitos assegurados por uma institucionalidade formal, liberal, sobreviverão sem que avancemos para democracias que sejam caminhos de uma maior redistribuição de poder, ampliação do acesso ao debate público e controle crescente sobre a esfera pública. Nosso rosto na história deve conjugar representação com participação, jogo parlamentar com movimentos sociais, de tal forma que os sistemas políticos deixem de ser arranjos onde o que vale é o veto do mercado.
A tomada de consciência popular é ferramenta indispensável num palco em que propostas de integração são eminentemente intergovernamentais. Ou para redefinir projetos, tais como o Mercosul, que surgiram com recorte marcadamente comercial, mas podem se transformar em pólo real de integração. O Estado, tal como destaca Mônica Bruckmán ''continuará sendo o principal estruturador da economia e da sociedade, assim como base institucional para articulação dos processos de integração regional''.
O governo Lula tem uma política externa que fortalece o Itamaraty e aposta no Mercosul como futuro espaço de integração. Sabe que toda movimentação regional está sob a espada de Dâmocles do imperialismo e suas 22 bases militares na região. Os tucanos, ao contrário, defendem uma integração subalterna, controlada por megacorporações. Em outubro, estaremos, entre outras coisas, definindo o rumo do bolivarianismo. A derrota do atual governo será a vitória do nunca. É com isso que sonhamos? Latinos e caribenhos sabemos que não.