Título: O Brasil de Florestan
Autor: Bruno Liberati
Fonte: Jornal do Brasil, 04/03/2006, Idéias & Livros, p. 1

Uma bolha de ar na corrente sangüínea (em linguagem médica, embolia gasosa) numa sessão de diálise matou um dos nossos maiores pensadores em 1995. Pode-se afirmar que, por uma ironia sociológica, Florestan Fernandes morreu em decorrência de mazelas bem brasileiras. Uma espécie de acerto de contas de uma realidade tacanha contra a qual lutou toda a vida para mudar. Tudo começou em 1975 com uma transfusão de sangue, durante operação de próstata, quando foi contaminado pelo vírus da hepatite C. Esse vacilo da saúde pública se encarregou de debilitar seu organismo durante os dez anos seguintes a ponto de levá-lo ao desespero e, no último round, a acreditar nas possibilidades de um questionado transplante de fígado. O que vem depois é um thriller de horror: o fígado do doador estava contaminado pela sífilis, o que implicou numa dose cavalar de antibióticos que pôs a nocaute seu sistema imunológico. Daí a falência múltipla dos órgãos. Uma sucessão de erros num processo cirúrgico fracassado que culminou na negligência.

Pouco mais de dez anos depois, as novas gerações têm a oportunidade de conhecer um pensador originalíssimo, com a republicação de sua obra pela Editora Globo. Coordenada por Maria Arminda do Nascimento Arruda, do Departamento de Sociologia da USP, a coleção reúne inicialmente A revolução burguesa no Brasil e Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. Simultaneamente, surgem livros que falam de sua vida, como o trabalho de Haroldo Ceravolo Sereza: Florestan: a inteligência militante, editado pela Boitempo.

A revolução burguesa no Brasil, um clássico publicado em 1974, ganha análise na página 3 deste caderno. Pensamento e ação é um livro que combina o militante e o intelectual. Lançado pela primeira vez em 1989, pouco depois de promulgada a atual Constituição, apresenta artigos de jornal, entrevistas, discursos, debates parlamentares de que participou, além de diálogos com militantes petistas. A reedição é conveniente sobretudo pela análise que faz do PT. Florestan cobra do partido a revitalização do socialismo e do marxismo.

Segundo o sociólogo, ¿o PT permanece como a única alternativa para os que se identificam com o socialismo. Por enquanto, não há outro lugar para nós fora dele e, estou convicto, ele comprovará que veio para reduzir o capitalismo selvagem e a sociedade de classes correspondente a cacos. Não obstante, temos que enfrentar com coragem o calcanhar-de-aquiles do PT, para não repetirmos aqui a tragédia que esfrangalhou a social-democracia e o `socialismo democrático¿, através de uma senilidade precoce¿. Florestan argumenta que ¿não há socialismo sem democracia da maioria e, por suas transformações, democracia de todos para todos¿. Para ele, esse era e deveria ser o roteiro ideológico e político do PT. Caso contrário, o partido ¿se converterá em um sonho perdido¿.

O livro de Haroldo Sereza, Florestan: a inteligência militante, oferece contribuição relevante para o conhecimento da vida do sociólogo. Além dos episódios jornalísticos, existe o trajeto intelectual, campo árido que exige alguma especialização. Sereza, porém, que mal conhecia Florestan, elaborou um perfil competente. O Florestan que emerge do livro é um homem complexo, às vezes contraditório. Pode-se dizer que um dos seus maiores paradoxos estava na personalidade forte, que conseguia conciliar desenraizamento, postura solitária vista muitas vezes como uma extrema independência, com uma atividade gregária, formadora, que nos últimos anos de vida o levaram a se comunicar com as massas numa aposta política. Era uma tese sociológica em si: o indivíduo e a sociedade nele dialogavam.

Se não foi um legítimo intelectual orgânico, pois não se enquadrava na categoria de pensador de partido, ele foi mais, talvez inclassificável ainda. Orientou seu pensamento e ação para o bem público e para os excluídos. Lutou em fronts diversos. Iniciou uma pequena participação no movimento trotskista. Dedicou-se de corpo e alma ao labor acadêmico. Lutou na imprensa por uma educação pública eficiente e popular. E, por fim, transformou-se em político institucional, ambiente no qual pretendia mostrar ¿a face da esquerda¿ de um partido operário nem light nem infantilmente esquerdista.

Florestan superou muitos e grandes obstáculos na vida: a perseguição política e o exílio. Mas tudo isso era café pequeno diante do que teve de passar na infância até o limiar da idade adulta. Filho de mãe solteira, foi criado em parte na casa onde ela era empregada doméstica. Obrigado a trabalhar com seis anos, foi engraxate, trabalhou numa alfaiataria, foi garçom e, mesmo quando chegou à universidade, vindo de um curso de ¿madureza¿, ainda tinha de se virar como representante de laboratório.

Sua carreira acadêmica cruza com os destinos de duas instituições universitárias que acabavam de ser fundadas, a Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e a Universidade de São Paulo (1934). Nesta última, inicialmente se achava um ¿intruso¿ no meio de um ¿convescote¿ da elite. Foi como se lutasse contra as paredes de uma fortaleza que ele emergiu do fundo do poço, como o próprio dizia, e se impôs.

Foi um eclético no verdadeiro sentido da palavra. Dependendo da investigação, aderia a formas diversas e contraditórias de encarar o objeto: é o caso da adesão ao funcionalismo de Émile Durkheim ou ao estrutural-funcionalismo americano. Ou ainda o uso dos tipos ideais de Max Weber ou do aparato conceitual de Marx.

Em 1982, ainda se mantinha a uma certa distância do PT. Quando colocado contra a parede por Lula, deu-lhe um passa fora : ¿Isso não pega comigo, porque eu tenho uma origem social inferior a sua (¿). Não sou obreirista e não me ajoelho diante do deus operário.¿ O PT teve de esperar. Só em 1986 ele se filiou. Do seu discípulo e par, Fernando Henrique, esperava que levantasse ¿algumas bandeiras verdadeiramente socialistas¿, que se colocasse do lado da ¿maioria pobre¿. Na eleição de 1994, fez o possível para não atacar FH, mas bateu forte no PSDB. Achava que essa agremiação era mais próxima de um socialismo reformista. Aos poucos, notou que FH e o PT, que em algum momento tinham possibilidade de convergir, tomaram caminhos opostos. Via no caminho do PSDB o que chamava de ¿perversão social-democrata¿ que o debilitaria. Nos poucos meses que viveu sob o governo FH, poupou seu discípulo da artilharia crítica. Com alguma ironia, escolheu atacar algo que chamou de aliança entre a direita e a ¿esquerda inteligente¿. No entanto, cultivava uma esperança na atuação do PT e de Lula numa visão ¿resignada¿ do que chamava de ¿revolução dentro da ordem¿, mesmo que tomando a via ¿social-democrata¿.

Lula, segundo Florestan, seria o líder capaz de conduzir o país às mudanças que o elevariam à condição de produtor da ¿civilização moderna¿. Hoje, deve estar se revirando no túmulo diante das trapalhadas do partido que de certa forma ajudou a criar.