Título: `Caixa-preta tem de ser arrebentada¿
Autor: Daniel Pereira e Luiz Orlando Carneiro
Fonte: Jornal do Brasil, 01/03/2006, País, p. A3

Concluída a ofensiva bem-sucedida contra o nepotismo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prepara investida para derrubar outra prática vigente no Poder Judiciário que conta com o repúdio da sociedade. Trata-se do pagamento a magistrados de supersalários, ou seja, de remunerações que ¿ acrescidas de representações e outros ¿penduricalhos¿ ¿ extrapolam o teto do funcionalismo público definido pela Constituição Federal. ¿ Como esses abusos ainda existem em grandes quantidades, não só no âmbito do Judiciário, mas também do Executivo e de assembléias legislativas, têm de ser exterminados ¿ defende o corregedor-nacional de Justiça, Antônio de Pádua Ribeiro.

Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Pádua Ribeiro é um entusiasta do CNJ. Diz que o órgão ¿ instalado em junho de 2005 em decorrência da promulgação da Emenda Constitucional da Reforma do Judiciário ¿ está jogando ¿luz do sol¿ em setores da Justiça pouco afeitos à transparência. E ¿afastando a poeira¿ que impregna certos segmentos por meio de atos como o que condiciona a promoção de um juiz à realização de sessão pública e à fundamentação da decisão.

¿ O Judiciário não tem nada a esconder. Caixa-preta, se existe, tem de ser arrebentada ¿ afirma.

Pádua Ribeiro tem no CNJ a missão de coordenar investigações contra magistrados denunciados por irregularidades no exercício do cargo. Ele garante que o trabalho está sendo realizado com sucesso. Explica que os nomes dos envolvidos não são divulgados porque os processos ainda não foram concluídos. Uma forma de evitar ¿condenação prévia¿.

- O presidente Luiz Inácio Lula da Silva errou ao falar em ''caixa-preta do Judiciário''?

- O Judiciário não tem nada a esconder. Caixa-preta, se existe, tem de ser arrebentada. Mas é preciso levar em conta que nosso Judiciário é muito diversificado. Há tribunais que ainda estão na época do início da República. Outros já entraram na era da informática, como é o caso dos juizados virtuais.

- Por que houve reação dos tribunais estaduais à resolução anti-nepotismo aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?

- Creio que com a decisão do Supremo Tribunal Federal a questão está solucionada. Os tribunais estão cumprindo a decisão do CNJ. Se algum criar resistência, o responsável pelo pagamento dessas verbas, que passaram a ser indevidas, poderá responder por infração disciplinar e até se tornar réu em ação de improbidade administrativa. Até o momento, não chegou ao CNJ nenhuma resistência formal.

- Qual a alegação dos tribunais estaduais para contestar a resolução?

- O nepotismo era tratado de forma diversificada na legislação federal. Existiam outras leis. Todas continham dispositivos proibindo o nepotismo, mas nem sempre eram coincidentes com a lei mais geral de 1996. Assim, alguns estados não têm norma legal contra o nepotismo, outros disciplinaram a matéria em leis complementares. Daí, a indagação jurídica: poderia uma decisão do Conselho Nacional de Justiça refletir nos estados? Com a decisão do STF, ficou claro que a resolução vale em nível estadual.

- Motivações corriqueiras também contribuíram para a resistência?

- Não há dúvida de que a prática do nepotismo é muito antiga no Brasil e está arraigada nos nossos costumes desde o início da República. Esses costumes não são democráticos. Na democracia todos devem ser tratados igualmente perante a lei. As distinções devem ter como parâmetro o mérito. O parentesco com uma autoridade não pode beneficiar quem busca emprego.

- Em qualquer Poder?

- Em qualquer Poder. A emenda que estende aos outros poderes a vedação do nepotismo há de ser aprovada, já que a prática não pode ser aceita numa democracia realmente exercida em benefício do povo. A democracia é o regime das leis e não dos homens. Essa distinção é de Norberto Bobbio. Se o regime é o da lei e não o dos homens, todos devem ser tratados igualmente perante a lei.

- Entre as competências do corregedor-nacional de Justiça está a realização de sindicâncias e inspeções. Há alguma em curso?

- Nós procuramos estabelecer canais com os tribunais para solucionar grande parte dos problemas por meio das próprias corregedorias. Isso tem sido feito com muito êxito. A maioria das reclamações é resolvida por via informal, com simples telefonemas ou e-mails.

- O senhor pode citar um exemplo?

- Há um processo que envolve um determinado desembargador. A sindicância já havia sido feita pelo tribunal, que apurou fatos relevantes e que, a serem verdadeiros, implicariam a demissão do magistrado. Como a demissão só é possível por via judicial, o tribunal mandou arquivar os autos. Era uma decisão que continha uma contradição em si mesma. Ora, existem outras formas de decisão na via administrativa, inclusive a aposentadoria. Diante disso, propus a instauração de processo disciplinar, o que foi aceito pelo tribunal. Esse processo está andando. É um desembargador acusado de ter obtido uma caminhoneta em troca de decisão favorável a determinado cliente.

- Por que os nomes dos magistrados investigados não são divulgados?

- Tem de se ter uma certa cautela em razão da presunção de inocência definida na Constituição. Se esses nomes são divulgados e depois for julgada improcedente a reclamação...

- Mas a Constituição diz que os atos do Judiciário devem ser públicos.

- Em princípio, devem ser públicos, tanto é que as nossas sessões são públicas. Mas durante o procedimento temos de estar atentos à presunção de inocência e procurar assegurar o direito de defesa. Caso contrário, faremos uma prévia condenação.

- Mas o Conselho Nacional de Justiça foi criado também para facilitar a punição de magistrados envolvidos em irregularidades...

- Já houve punições pela via dos estados. Eu oficio para os corregedores, eles tomam a providência e me avisam que o processo teve andamento ou que o problema foi superado. Então, as medidas são tomadas.

- Não seria interessante divulgar os resultados?

- Dou o exemplo de Tocantins. Tinha uma juíza substituta que liberou uma verba de significativo porte por meio de liminar. É algo que não pode ser feito, porque, se liberar, depois não se obterá a verba de volta. Todos os dados que me chegaram mostravam possibilidade muito grande de corrupção. A juíza passou a responder a processo disciplinar. Temos controle sobre todos os casos que mandamos apurar nos estados. Não atuamos diretamente porque seria desautorizar o corregedor local. Pedimos a ele que tome a medida necessária e mantenha informado o corregedor-nacional de Justiça.

- Há resistência por parte dos corregedores?

- Quase todos os corregedores vieram me visitar. Tive conversas produtivas com eles e senti uma vontade muito grande de colaboração, de fazer o que for necessário para cumprir a lei, inclusive na parte disciplinar. Claro que não temos ainda uma experiência do Conselho Nacional de Justiça no Brasil. Há uma fase de montagem.

- O senhor defende a possibilidade de perda de cargo de juiz por via administrativa?

- Nos casos de falta de decoro e falta de trabalho, há de se admitir a perda do cargo de juiz pela via administrativa. Sempre defendi isso.

- Essa regra tem chance de prosperar na Câmara?

- Há uma resistência muito grande da magistratura, mas penso que isso viria em benefício do Judiciário. Evidentemente que seguindo o processo, assegurando ampla defesa aos magistrados. A composição do Conselho Nacional de Justiça é diversificada. O CNJ pode julgar com inteira isenção. O próprio Superior Tribunal de Justiça já teve um processo contra um de seus ministros [Vicente Leal, que pediu aposentadoria]. Foi muito penoso, porque se tratava de um colega. Esse grau de subjetividade é pernicioso a uma decisão isenta.

- Os supersalários, ou seja, vencimentos acima do teto do funcionalismo público, têm de ser banidos do Judiciário?

- É fundamental essa adequação do teto. É uma luta muito grande. Lembro que um presidente da República se elegeu com o slogan de caçador de marajás. Então, é um tema que preocupa a sociedade, que não quer, com toda a razão, admitir supersalários no serviço público. Como esses abusos ainda existem em grandes quantidades, não só no âmbito do Judiciário, mas também do Executivo e de assembléias legislativas, têm de ser exterminados. No âmbito do Judiciário, o CNJ tem que tomar uma medida. Há dificuldades porque há várias leis aprovadas que outorgam benefícios. Existem estados em que se fala não só no adicional, mas em quarta e quinta parte de salários, como acréscimos.

- Mas a Constituição, que está acima das leis, define o teto...

- O que temos de examinar é isso: a Constituição, na sua essência, acabou com os penduricalhos e isso o Conselho há de deixar bem claro. No tocante aos penduricalhos, há uma dificuldade de fazer distinção de certas verbas que são de caráter indenizatório. Essas devem perdurar.

- O senhor poderia citar exemplos de verbas indenizatórias?

- Por exemplo, quando o juiz viaja por necessidade do serviço. Ele terá despesas, como pagamento de hotel e de alimentação. Como qualquer servidor público, há de ser indenizado por isso. Ninguém vai tirar dinheiro do próprio bolso.

- Há dois anos, houve um movimento formal dos tribunais superiores contra o Conselho Nacional de Justiça. Foi uma decisão acertada a criação do órgão?

- Os tribunais superiores não foram contra o Conselho Nacional de Justiça, mas apenas à sua composição (com pessoas estranhas à magistratura). A questão da caixa-preta também é um emblema que gera emoções e há de ser visto com certa cautela. No Judiciário, há setores que realmente dificultam a divulgação de dados, como no caso do nepotismo. Então, o termo caixa-preta significa: setores do Judiciário que procuram esconder as coisas que precisam ter conhecimento público. A expressão ''caixa-preta'' merece ressalvas. O conselho, por exemplo, baixou ato dizendo que as promoções de juízes têm de ser em sessões públicas e as decisões, fundamentadas. Isso inibe que sejam beneficiados os indicados de juízes, de desembargadores. É uma espécie de luz do sol que está cada vez mais penetrando em todo o Judiciário e afastando a poeira em certos setores.