Título: O planeta para todos
Autor: Francisco Sarmento
Fonte: Jornal do Brasil, 01/03/2006, Outras Opiniões, p. A11

Cerca de 840 milhões de pessoas no mundo passam fome e mais de 2 bilhões são sub-nutridas. A grande maioria destas pessoas sobrevive com menos de US$ 2 por dia e, embora vivam no campo, correm o grave risco de passar suas vidas sem terra para cultivar, sua única forma de sobrevivência.

Especialmente nas últimas décadas, a liberalização mundial provocou maiores restrições ao acesso das populações mais pobres do planeta a este recurso, ocasionando uma pressão migratória do campo para as cidades e do Sul para o Norte. Neste período, o tema foi praticamente abolido das prioridades de governos e órgãos internacionais. A continuidade de políticas liberais concentradoras no setor primário mercantiliza e privatiza o acesso à terra e a outros recursos naturais, e pode ser causa de um verdadeiro genocídio longe das câmaras de TV.

Mas o gradual desaparecimento dos pequenos camponeses em todo o mundo pode ser combatido se for aceito e defendido um modelo de desenvolvimento rural alternativo, que priorize aqueles que vivem da terra, da água, da floresta e de outros recursos naturais. Para isso, é fundamental que os países possam definir suas próprias políticas agrícolas e que o conceito de soberania alimentar ganhe expressão prática nas políticas internacionais.

As questões sobre acesso a terra e recursos naturais precisam voltar para a agenda dos governos e organismos internacionais. Para tanto, é importante uma aliança internacional dos interessados: pequenos agricultores, jovens, setores sociais urbanos, movimentos de mulheres, ambientalistas, pescadores costeiros, populações indígenas, acadêmicos e outros atores sociais. A verdade é que a fome, a pobreza, a degradação ecológica, a qualidade dos produtos alimentares que consumimos, as migrações e os conflitos gerados pela impossibilidade do acesso da maioria da população mundial aos recursos naturais afetam toda a humanidade.

Cerca de 25 anos após a primeira Conferência Mundial e em função das lutas dos movimentos sociais, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e o governo brasileiro vão organizar em Porto Alegre, de 6 a 10 de março, a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural. Governos, organizações internacionais e sociedade civil do mundo inteiro se encontrarão para debater novas políticas para este século.

Muitas organizações internacionais atenderam ao pedido da FAO e realizaram estudos de caso, pautas para os debates nesta conferência. A ActionAid apoiou pesquisas em vários países e os resultados demonstram a urgência de novas políticas mundiais. Os estudos realizados em Uganda e na Índia mostram os problemas vividos por mulheres no acesso seguro à terra, tema prioritário para a ActionAid. O estudo do Sri Lanka trata das questões de terra pós Tsunami e o relatório nepalês analisa a regulamentação dos direitos de acesso tradicionais de minorias étnicas marginalizadas.

Dois outros estudos africanos falam das experiências de Moçambique e Etiópia, onde a terra é estatizada. Ainda assim, o direito de acesso das comunidades tradicionais a ela é restrito e complexo, mostrando que, independente do regime político vigente, a organização da sociedade civil e sua capacidade de interlocução política e técnica são fundamentais para a defesa dos direitos de populações marginalizadas.

Os governos presentes na Conferência Internacional devem aceitar a urgente necessidade de priorizar o apoio a programas genuínos de reforma agrária e desenvolvimento rural. Neste século, reforma agrária não significa apenas distribuição de terra, mas deve ser um dos componentes de uma política agrícola que contribua para numa partilha mais eqüitativa dos recursos. A luta pela terra é uma luta por direitos negados a mais de metade da população mundial.